sábado, novembro 25, 2017

FICÇÕES


Ela fustigou-o com os olhos incendiados de ciúme, reverberantes e ao mesmo tempo carregados de sombra. Ele disse para si, tem calma que a crise vai passar, daqui a umas horas, no máximo um dia, tudo voltará ao normal, e lembrou-se de coisas filosóficas como o eterno retorno de Nietzsche ou o refluxo das águas dos rios sob o efeito das marés, algo com que Heraclito de Éfeso nunca sonhou. Era sua convicção profunda de que tudo o que vai há-de voltar, e isso dava-lhe ao mesmo tempo uma grande dose de tranquilidade e outra ainda maior de excitação.   
Você não me convidou para sair no fim-de-semana, esqueceu-se de mim que sou sua amiga e fetiche erótico, disse ela.
Doeu-lhe aquela referência do fetiche erótico, não queria acreditar no desconcerto da acusação, ele que se julgava sem perversões e apenas se habituara a lamber-lhe as covas das axilas e os vales húmidos das virilhas antes de partir para os vôos rasantes da satisfação do corpo. Chamar fetiche a um exercício preludial era algo que não conseguia conceber.
Assustou-se quando passadas as primeiras vinte e quatro horas ela continuava sem responder a telefonemas e mensagens. Depois, faltara a um jantar há muito aprazado com um grupo de amigos e, por último, quase deixara de lhe falar quando por acaso se encontravam na rua: boa tarde, boa noite, passe bem que não posso perder tempo.
Para grandes males, grandes remédios, escreveu-lhe uma carta, dessas de envelope e selo de correio, narrando o deserto em que se transformara a sua vida, só areia e nenhum fulgor de welwitschia na dobra cálida das dunas.
Fechemos a caixa de Pandora dos nossos desentendimentos, aproveitemos os dias e ainda mais as noites, riscou o amante em perigo no papel da carta. Lembre-se de quando lhe dei aquele beijo na mão, foi o instante inicial, é pelas mãos que começam os sonhos e a felicidade dos homens, e para lá do beijo na mão todos os beijos que se seguiram em partes mais húmidas e desafiantes do seu corpo de sílfide, a boca, claro, a boca bilingue, como dizia o poeta Ruy Belo, sendo que os meus significados de  boca e de bilingue são diversos, a língua usa-se em várias bocas e de diferentes formas como muito bem sabe por experiência adquirida. Nenhuma resposta veio. Ela que tanto gostava da fluência da sua escrita, tipo escritor pós-moderno com laivos gordos de classicismo, era uma boa arma, a escrita, mas não funcionou. Venha para mim, acrescentou ainda o coitado em desespero de causa, venha para mim que eu segredo-lhe aquela frase que tanto gostava de ouvir, lembra-se?, e era…
Recebeu em troca um grosso sobrescrito normalizado com carimbo redondo sobre vinheta de correio azul: devolvia-lhe todos os poemas que ele lhe fizera durante mais de três meses. Um deles, feito depois de um passeio à beira-Tejo, terminava assim:
Os rios,
água íntima dos lábios
como li em Fiama, antemanhãs
de escaldantes pélagos.
O poema não saiu grande coisa e bem escusava o poetastro de meter a Fiama ao barulho. Foi castigado por tudo isso: ela arranjou um novo namorado e, coisa extraordinária, ficou a odiar poesia.
 
 
 

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