domingo, janeiro 10, 2016

UMA PESSOA DE BOA ÍNDOLE


          O amor é incerto como um carreiro de formigas, disse o meu amigo, um pseudo-estoico desconhecedor absoluto da filosofia do Barão de Teive.
            O amor é o que é, argui negligentemente.
            O meu amigo lançou-me um olhar lívido e impassível, coçou uma borbulha ao lado do nariz sob o rebordo da lente dos óculos, e concretizou:
            Ela pensava ter-me agarrado pela trela como um caniche de pelo hirsuto, mas a mim nenhuma me prende: nem pelo sexo, nem pelo estômago… por coisa nenhuma.
            Aguentei a tirada. Eu estava farto de debater o seu niilismo em matéria de amor e casamento. Anos de conversas, de conselhos, falando-lhe de entrega e partilha, de vida a dois e de felicidade no lar não o haviam demovido dos seus abstrusos princípios. Cheguei a oferecer-lhe uma edição barata da Carta de Guia de Casados, de D. Francisco Manuel de Melo, e outra luxuosa de A Vida Sexual dos Solteiros e Casados, do médico e sacerdote João Mohana, pensando poder estimular-lhe uma inclinação para o compromisso. Apresentei-lhe mulheres, levei-o a bailes, inscrevi-o em sítios de relacionamentos amorosos da Internet – mas ele, nada.
            Andávamos sempre juntos – eu, a minha mulher e ele – até a coisa começar a ser vista e comentada como um “ménage à trois”, o que me desgostou profundamente. Foi aí, nesse aperto de ordem ética e moral, que o atirei para os braços de Adélia, uma descasada de trinta e tal anos, engolidora de homens, mas com sinais confortantes de alguma propensão para a estabilidade afetiva.
            Adélia prezava muito o social. Ia a exposições de pintura, a lançamentos de livros, frequentava os eventos anunciados no “facebook” com a mesma seriedade de quem marca presença em missas do sétimo dia ou em “raves” de jovens com “disk jockeys” da moda. Adélia fruía o efémero superior e dava nota disso nas redes sociais. Punha comentários e “likes” nas páginas de personalidades com 4999 seguidores e inscrevia como amigos figuras gradas do cinema, do jornalismo e das artes. Era o contrário feliz da não-inscrição postulada pelo filósofo José Gil.
            Devo dizer que, em tempos, estive apaixonado por Adélia, embora nunca tenhamos chegado a vias de facto. Ela achava-me piada, brincava comigo e até tentava fazer-me ciúmes, mas, no fundo, sabia que eu não era homem que pudesse servir-lhe. Desisti dos seus perfumes de maçã e ervas depois de um jantar de “sushi” acompanhado de saquê. A partir daí, passámos a falar de dois em dois meses, por telefone, e a enchermo-nos reciprocamente de “likes” nas mensagens lançadas no “facebook”.
            Conheço uma gaja que está bem para ti, disse ao meu amigo. Deixa lá essas merdas de estoico-epicurista, ó pá, e mete a mão na massa, que para estupidez já chega o “Soneto de Onan”, de José Régio, Sim!, só a mim me entrego e me possuo, / Porque eu me basto para achar o mundo!
            O meu amigo foi conhecer Adélia num restaurante fino e a coisa pegou. Fiquei feliz por ele e por ela. Bem, para ser sincero senti uma certa dor de corno: Adélia não me dera hipóteses e já se agradava, assim às primeiras, do meu amigo especioso.
            Quando dei a novidade à minha mulher, vi-lhe no rosto uma sombra de contrariedade. Acabava desta forma o nosso companheirismo triásico, as noites passadas em discotecas com a sua cabeça tanto assentando no meu ombro, como os seus seios roçando sem maldade pelos braços dele.
            Sosseguei-a. Continuaríamos a ser amigos, agora os dois casais, cada um com a sua, não viessem as línguas ordinárias badalar “foursomes” e orgias, seríamos superiores a isso. Mas Adélia nunca se aproximou de nós. Durante vários meses deixei de ver o meu amigo, experienciando, julgava eu, as alegrias gozosas da vida de casal. Quando finalmente o consegui apanhar para uma conversa é que soube a verdade. Ou seja, meia verdade, porque a outra metade foi-me contada por Adélia. Tive de juntar as duas partes para ter a peça completa, verso e anverso, positivo e negativo, afirmação e contraditório.
            Segundo o meu amigo, Adélia era dominadora, ninfomaníaca e dada a manias de grandeza. De acordo com Adélia, o meu amigo era vulgar, de relacionamento difícil e muito mau na cama.
            Tive pena pelos dois, sou uma pessoa de boa índole. Contei à minha mulher e um brilho novo surgiu-lhe nos olhos. Depois disse-me muito mal de Adélia, com quem nunca simpatizara, e concordou ser o meu amigo, de facto, de uma simplicidade comovente e pouco dado a convivências em sociedade. Não aceitou, porém, que fosse mau na cama, isso seria uma calúnia de Adélia. De seguida fez-se muito vermelha, e esta sua reação tomou-me por uns instantes o pensamento.
Não voltámos a falar de Adélia e, para esquecermos o triste caso do meu amigo, combinámos uma ida ao cinema no fim de semana seguinte. Os três, como antigamente.

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