segunda-feira, maio 18, 2015

POEMA DE AMOR A PARTIR DE WATTEAU

WATTEAU, A loja de Gersaint (1720-21)

Não quero saber de nenhum dos quadros
da loja, nem mesmo desse do Rei Sol
que o moço embala, com esmeros profissionais,
para um cliente importante. Basta-me a luz

do sapato ante o degrau, o jeito da perna
que precede o instante da levitação do corpo,
o volume das ancas e o mais que se não vê, mas
imagino. O resto, que não é pouco, só o direi a ti. 

 18/5/2015


domingo, maio 17, 2015

HISTÓRIAS DE AMORES E DESAMORES - A RAPARIGA DA BLUSA ROMENA

Conheci primeiro Odette de Crécy, há tanto tempo que não consigo dizer o ano ou o mês em que tal sucedeu. Vinha vestida, pareceu-me, à moda da Belle Époque, e foi como se assistisse ao nascimento de Vénus, adulta e nua como naquele quadro célebre de Botticelli. Depois chegou Natasha Rostova e só mais tarde, muito mais tarde, Elizabeth Bennet e Maria Monforte. Com esta tive uma relação duradoura, feita de olhares lânguidos, sempre à espera de ver aparecer um príncipe italiano que ma roubasse.
Frequentei o café durante muito tempo. Ali sentado na mesa do canto, fiz mais viagens que o Gulliver de Swift, conheci mais mulheres que o burlador de Sevilha. A verdade, porém, é que nunca chegava à fala com elas. Por timidez ou qualquer outra razão mais ou menos estúpida, não me sentia à vontade com o sexo oposto.  Elas entravam, eu olhava-as, dava-lhes um nome de ressonâncias artísticas ou literárias, e isso satisfazia-me. Foi assim durante muitos anos, eu era (e sou ainda, creio) uma espécie de onanista da imaginação.
O caso mudou de figura com uma rapariga que passou a estudar no café aí por Março ou Abril do ano passado. Era época de frequências. Trazia os seus livros e cadernos, sentava-se na mesa ao lado da minha e vestia sempre a mesma blusa. Creio que teria várias peças semelhantes, variando apenas em um ou outro detalhe do bordado, porque as blusas estavam sempre impecavelmente limpas e, parecendo a mesma, se calhar nenhuma seria igual à anterior.
O seu nome descobri-o com facilidade, estava escrito na capa dum caderno, sendo esse o dado que, para mim, a tornou diferente das outras. Eu sabia-lhe o nome, não tinha de o inventar.
Um dia dirigi-lhe a palavra. Perguntei-lhe que tal iam os estudos – que, pelos livros que via sobre a mesa, eram de História de Arte –, que não queria atrapalhá-la, mas que lhe desejava sorte e sucesso nas avaliações.
A rapariga, que se chamava Sandra, deve ter achado a minha conversa fora do comum. Olhou-me com um ar de vigilante de museu, igual ao que se tem quando um visitante se aproxima muito de uma obra exposta, ameaçando tocar-lhe, e agradeceu delicadamente. Eu compreendera que a minha abordagem não tinha sido perfeita, talvez pouco natural e com um palavreado fora de moda, mas fiquei satisfeito por ter sido um primeiro esforço de comunicação.  
Passei a falar-lhe sempre que se sentava na mesa ao lado da minha. Para a impressionar, referia-lhe Courbet e o Enterro em Ornans, Watteau e A Loja de Gersaint, grandes artistas e grandes obras, arengas que ela acolhia conformadamente, suspendendo o trabalho à espera que eu acabasse para poder continuar.
Andei nisto uns dias até que a rapariga passou a sentar-se em mesas cada vez mais afastadas da minha, lá para o fundo do café, atrás de uma coluna que nem dava para a ver. A verdade é que a minha conversa não atava nem desatava. Era, reconheço-o agora, do tipo “nem o pai morre nem a gente almoça”. As mulheres – eu não sabia, mas disse-me um antigo colega com quem agora costumo encontrar-me –, gostam é de homens do tipo “tiro e queda”, sem papas na língua, “Queres ou não queres? É em minha casa ou na tua?”
Graças às lições deste meu antigo colega, aprendi bastante. Fiquei mais preparado para enfrentar os desafios do mundo, não vivendo tanto da imaginação e dos seus floreados.
Esta semana, ao fim de algum tempo, voltei ao café. Sentei-me na mesa do costume e, coisa que já não esperava, tive uma recaída. Bebia uma água com gás quando vi entrar uma mulher que de imediato associei à Victorine Meurent do Almoço sobre a Relva: o mesmo cabelo, o mesmo sorriso entre o cândido e o perverso, as pernas e os seios igualmente desafiantes. Ainda aturdido, deitei os olhos para as mesas do fundo e lá estava, numa delas, a estudante de História de Arte. Só que já não era a Sandra que eu conhecera e com quem chegara a falar, mas a jovem mulher pintada por Matisse com uma blusa romena, a mesma que Sandra sempre trazia como se não tivesse mais nada para vestir.
Já decidi: não voltarei ao café tão cedo. O meu antigo colega apresentou-me uma jovem que trabalha como auxiliar de cozinha num restaurante do bairro. Talvez com ela, na simplicidade das nossas conversas, eu consiga esquecer a blusa romena, as outras mulheres, e acalmar o tormento da minha imaginação.
Auxiliar de cozinha? Mas como se chama  a auxiliar da cozinheira Françoise no romance Do Lado de Swann?

quarta-feira, maio 13, 2015

HISTÓRIAS DE AMORES E DESAMORES - A MINHA ANTIGA RAPARIGA


Não é que eu não gostasse das pernas dela, ou dos olhos, ou dos dentinhos ralos com que me mordia as orelhas quando repousávamos depois das cansativas sessões de cama.  A bem dizer, eu gostava da maior parte dos seus atributos físicos: os seios pequenos como limões; o seu ventre liso lavrado por uma tatuagem esquálida; os dedos finos, de unhas brilhantes sem pintura; as mãos que sabiam agarrar e se faziam sentir.
A minha rapariga era bonita e agradável, até sensual, mas uma coisa me tirava toda a alegria da relação: a sua voz.
A princípio não me dei conta disso. Embora nos amássemos muito, falávamos pouco.  A minha rapariga era operária de fábrica, não sabia conversar de política, nem de economia ou literatura, e eu não me interessava pela banalidade do seu quotidiano fabril. O que falávamos, alto e bom som, era a linguagem dos corpos e, mesmo assim, ela mais do que eu, pois para ser inteiramente franco, devo dizer que, como homem, sou um bocado fraco na cama.
A voz da minha rapariga, voltemos ao assunto, era de uma rouquidão que fazia lembrar um produto transgénico obtido por mistura das vozes distorcidas de Janis Joplin e Bruce Springsteen. Não me perguntem o que quero dizer com isto que não sei explicar. Era de uma rouquidão amoral, obscena e ao mesmo tempo aterrorizante. Ela não podia pronunciar nenhuma dessas palavras ou locuções que costumam sair da boca das mulheres quando estão no melhor da festa que logo eu me atrofiava todo e já não conseguia chegar a lado nenhum. As vergonhas por que então passei!
O caso pareceu-me de certa gravidade e, sem ela saber, consultei um curandeiro que me receitou pau-de-cabinda e algodão para os ouvidos. O homem interessou-se pelo problema da minha rapariga (ou seria meu?) e disse-me que lhe recomendasse uma infusão de coentros e flor de laranjeira para gargarejar duas vezes ao dia. Que a rouquidão passaria.
Fui para ela mais animado e toquei-lhe no assunto. O que eu fui fazer! A minha rapariga, até aí tão submissa, tão amiga, levantou-se alterada e começou a dizer que já desconfiava que eu não era homem para ela, que não viesse com desculpas para a minha imperícia e frustrações sexuais, que eu tinha a cabeça cheia de romances e outras porcarias dos livros e da Internet e que o que devia fazer era vergar a mola como ela, e não andar o dia inteiro a puxar o lustro às cadeiras das bibliotecas, a escrevinhar coisas parvas, que ela já tinha lido uma vez e não achara ponta por onde se pudesse pegar. E, estocada final, que já lhe dissera um colega do sindicato, amigo do peito, que a nossa relação era de um interclassismo estéril, antinatural, coisa que ela não percebeu mas que lhe pareceu fazer sentido.
Até me custa a continuar a narração. Ainda andei uns dias, tem-te não caias, a ver se compunha o ramalhete, a mandar-lhe flores e versos lúbricos, mas a minha rapariga não voltou a ser mesma. Trocou-me ao fim de umas semanas por um brasileiro bem apessoado que fazia entregas de pizzas numa loja do bairro.
Hoje, na mais completa solidão, não deixo de pensar na importância errada que dei à voz daquela que foi a minha rapariga, a forma como essa obsessão arruinou a nossa relação amorosa. Teria ela, de facto, essa voz rouca, indefinível e tormentosa, ou não teria sido tudo uma falsa percepção, uma forma inconsciente de eu mascarar a minha incapacidade para sentir e amar de forma plena?
Ontem mesmo, e daí a razão deste escrito, encontrei a minha antiga rapariga na mercearia da rua a comprar uns morangos para a sobremesa do jantar. Talvez se preparasse para uma refeição à luz das velas com o citado brasileiro entregador de pizzas. Trocámos umas breves palavras e, coisa estranha, não lhe senti a rouquidão da voz, mas, pelo contrário, tudo o que lhe saía da boca eram palavras límpidas e harmoniosas, boas de ouvir e tomar.  Verti uma lágrima e, uma vez mais na vida, tive pena de ter perdido um amor.