sexta-feira, novembro 28, 2014

EM PARATY

para ti - mensagem

daqui
não posso ouvir o sino das tuas quatro
igrejas nem mirar meu rosto de cair de
tarde nas águas do teu rio-poesia
imitando as velhas árvores.
mas, em cada pedra redonda da tua rua
deixei uma lágrima escondida
que fará brotar mais ervas
(ervas que as mulheres
capinam durante o dia
e à noite continuam a crescer).
(...)
JOSÉ KLEBER (1932-1989), poeta paratiense

 

domingo, novembro 02, 2014

AMIZADES ERÓTICAS


“Kundera enganou-se”, disse-me o meu amigo, piscando os olhos onde vogava um brilho de assertividade.
“Enganou-se”, repetiu.
Foi aí, no fulgor inesperado da repetição, que a coisa começou a interessar-me.
“Enganou-se em quê?”, perguntei.
E ele:
“Enganou-se naquela definição das amizades eróticas. Não é nada daquilo que ele diz, duzentas mulheres em oito anos, isso é a voragem do engate, apenas isso, o gajo confundiu as coisas.”
Admirei-me.
E o meu amigo:
“Sei bem o que são amizades eróticas, tenho várias.”
E acrescentou, o despudorado:
“Amizade erótica, como eu a vejo, é uma amizade marcada pelo erotismo, mas sem consumação carnal.”
Voltei a admirar-me.
“Escuta”, continuou, “é o mais erótico que há: uma amizade que se prolonga sob o signo do impulso sexual, porque há sempre erotismo numa amizade, mas retardada a sua concretização até aos limites do possível… ou do já não possível. Sentir-se que o que podia ter acontecido ainda não aconteceu, a vela do mistério a arder até ao fim, é muito estimulante… Porque depois de se passar ao acto, acaba-se o mistério, é sempre igual ao anterior.”
“Ó pá, mas isso dá mau resultado, elas têm pressa, não gostam de esperar…”
“Eu sei”, respondeu-me o meu amigo, “por isso é que em oito anos não tive duzentas, como a personagem do Kundera, mas apenas duas.”
Saí de ao pé dele e pus-me a deambular pela cidade, precisava de apanhar ar na cara. Há cada tipo mais esquisito! E são estes os amigos que temos!
 

O PODER DAS CARTAS

 
Vi-o cair. Estava eu sentado na esplanada do café, ruminando um jornal do dia na companhia de uma bebida que me trouxera um empregado aciganado, de brinquinho na orelha, movendo-se nuns ténis azuis e brancos de marca indefinida.
Caiu à minha frente como uma maçã de Newton, os pés a fugirem-lhe, a cara no chão.
“Ajudem o rapaz por amor de Deus”, disse uma senhora decrépita que acolitava uma distribuidora de folhetos das Testemunhas de Jeová.
“Dêem-lhe um copo de água, não vá desmaiar”, aconselhou a dona da loja das revistas, uma loira boa de quarenta e tal anos.
Um moço bombeiro que bebia uma imperial prestou os primeiros socorros.
“Um pacotinho de açúcar, por favor, isto deve ser hipoglicémia”, gritou para dentro do café.
O rapaz, branco como uma raspadinha sem prémio, recebeu o açúcar por via sublingual. Olhou em volta: viu o moço bombeiro, a senhora decrépita e a loira boa. Suspirava à medida que se recompunha, e disse:“Podia ter acabado o namoro por SMS, ou apagado o meu nome na sua página do facebook, ou pintado na parede do meu prédio um esquece-me ou um deixa-me… Mas não, teve o requinte de me escrever uma carta, tudo dito e explicado. Isto já não se usa, por isso é que me custou tanto.”
Do bolso do casaco saía-lhe um sobrescrito de correio azul, lívido apesar de azul. Tive pena.