sábado, julho 12, 2014

«E ARLES THÉO CONTINUA A ARDER SOB A ORELHA CORTADA»

 
VINCENT VAN GOGH, "Café à noite em Arles", 1888

ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THÉO

nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo...
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar

o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada

por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol

AL BERTO, “A Secreta Vida das Imagens”, Lisboa, Contexto, 1991, pp. 22 e 23

Sem comentários: