sábado, março 09, 2013

UMA HISTÓRIA A DOIS TECLADOS


Autores: CRISTINA LEIMART (textos 2 e 4)

               JOÃO ALBERGARIA (textos 1, 3 e 5)

1.

“Pois meu amigo, nas relações amorosas há dois géneros de mulheres: as que não iniciam uma nova relação sem acabarem com a anterior e as que precisam de começar com outra para porem fim àquela que têm. As primeiras são mulheres basicamente honestas, admiro-as de verdade; as segundas não têm carácter, são criaturinhas ínfimas e desprezíveis.”
Quem falava assim era um ajudante de despachante que costumava sentar-se na cervejaria, nas tardes lentas de Verão, à hora em que o pessoal começava a sair dos escritórios e a sede acumulada do dia tomava proporções titânicas. Era um tipo magro, de testa alta e nariz adunco que fazia lembrar uma ave rapace. Trazia sempre consigo uma grossa pasta de couro, refúgio seguro dos processos que, a mando do seu patrão, diariamente levava à alfândega. Sentia-se ali um caso de amor mal resolvido, um desgosto, talvez uma traição, mas quem somos nós para avaliar essas situações que ensombram as almas dos infortunados amantes?
Trincava um tremoço e continuava:
“A mentira mais insidiosa é a que opera por omissão: essa é a grande arte da mentira feminina. Digo-te, meu amigo, são raras as mulheres que simulam orgasmos ou se queixam de enxaquecas quando vão para a cama. Expediente mais comum é deixarem-se ficar a ver televisão até às duas da manhã e só recolherem ao leito conjugal quando estão certas de que o marido dorme o sono dos justos. Enganadoras filhas de Eva!”
O homem que o escutava, um poeta falhado, obtemperava de olhos piscos entre duas trincadas num rissol de camarão:
“A poesia, meu caro, há que ver tudo isso à luz da poesia.

2.

"O amor goza de prazo de validade, não se pode congelá-lo por tempo indeterminado. Há quem admire a relação amorosa como um monumento imponente, quando não passa de construção frágil, uma capelinha vacilante."
“Achas? Em tempos tive uma paixão de caixão ao chão e…”
- Cortaaa! “Uma paixão de caixão ao chão”?? Onde é que isso está no script? Mas isto é alguma novela assente no improviso?
- O texto é monótono…
- Pá. És o argumentista? Não és o argumentista. Ontem também meteste a colher no texto e essa atitude já me começa a trabalhar no estômago. Cinge-te ao guião. Fazes favor.
Iam no décimo primeiro take. A cena, que à partida se oferecia simples, expunha-se a contingências variadas. Primeiro um adereço do cenário, o autocolante a imitar azulejo português sinalizando a “Cervejaria Virginal”, começara a descolar-se, lentamente, por trás da cabeça do ator que fazia de empregado, tirando protagonismo ao seu estudado gesto de poisar o pratinho de tremoços sem ressoar no vidro da mesa - Corta!
Cortaram depois ao ver-se a silhueta de um figurante entrar inadvertidamente no frame, ofendendo, segundo justificação do realizador, o delicado equilíbrio luz -sombra. Cortou-se quando o ator da pasta de couro se atrapalhou em pleno diálogo, falando de “ormas… osmargu… ormasgos… Eh pá desculpem, enrolou-se-me a língua”, corando como uma cereja do Fundão por entre a risota geral. Corta! também quando o ruído de uma avioneta abafou a fala grave do narrador e encrespou os nervos da equipa de filmagens, a quem haviam garantido total ausência de sobrevoos ao local entre as sete e trinta e as dezanove horas desse dia. De contratempo em contratempo, a picuinhice do realizador ainda gritou Corta! no instante em que um close-up revelou os pelos eriçados do braço esquerdo do outro ator, pois a cena, embora invocasse um típico dia de Verão, era filmada logo a seguir aos Reis.
Enfim passava das duas e trinta quando o realizador sentenciou:
- Há mais cenas para filmar, vamos lá. Última tentativa: As Horas sem Maria - Take 12– Ação!

3.

O poeta falhado expendeu, entretanto, algumas considerações sobre mulheres que conheceu e amou: a morgadinha dos canaviais, Emma Bovary, a Barbara de Jacques Prévert.
Regurgitava de gente a Cervejaria Virginal, Vaginal se chamaria se o produtor, atento ao negócio, não tem intervindo no script para corrigir a enormidade.
– Depois deste filme, que me parece poder descambar em algumas ousadias torpes, só investirei em histórias com meninas do tipo Jenny ou Joaninha dos olhos verdes – terá dito.
A anotadora, uma rapariga de cachecol ondulante e saia cor de tijolo da Mango, trocou um olhar de entendimento com o realizador, enquanto a barra zebrada da claquete era movimentada por um assistente, produzindo aquele ruído seco parecido com uma palmadinha nas costas ou um beijo repenicado. Iniciado o take, disse o ajudante de despachante para o poeta falhado:
“Percebes bem pouco de mulheres, meu caro amigo. Fica a saber que as piores gajas são as da alta. Se te decidires a começar com alguma, escolhe uma costureirinha, uma rapariguinha do shopping, uma funcionária municipal com vencimento não superior a 550 euros. O meu patrão é casado com uma tipa cheia de massa, e ainda por cima quinze anos mais nova do que ele, sei bem o que se passa na vida daquele casal, nem me atrevo a falar. Razão tinha o nosso D. Francisco Manuel de Melo na sua carta de guia de casados!”
O poeta falhado contrapunha:
“Mas o amor, meu amigo, e deixamos de acreditar no amor?”
O ajudante de despachante mandou vir mais uma imperial; abriu a pasta de couro para se certificar de que não havia perdido o processo de despacho aduaneiro respeitante às peças para submarinos do Ministério da Defesa; tirou de um dente lascado, com a unha do dedo mínimo, um pedaço de tremoço que o afligia; deu liberdade, em discreto flato, a um congestionante gás estomacal.
Ia finalmente falar, mas foi interrompido pela realização. À porta da cervejaria, em grande algazarra de concertinas, violas, cavaquinhos e passinhos, passava o rancho folclórico de Aranda dos Montes, concelho de Alguidares da Beira, que tinha ido a S. Bento cantar as janeiras ao senhor primeiro-ministro. Era nos dias a seguir aos Reis, lembram-se?

4.

Era nos dias a seguir aos Reis, e o cortejo era a gota de água que fazia transbordar a paciência do realizador. César Gorjão berrou“Corta!”, sibilou “Campónios lambe-botas, de onde é que saiu esta cambada, paciência, o sol já desceu demasiado, temos a luz feita num oito, recomeça-se amanhã” e fingiu ignorar um afago de solidariedade esboçado pela jovem anotadora.
Técnicos e figurantes começaram a dispersar. E o mesmo teriam feito os dois atores de serviço à mesa da Cervejaria Virginal, se o diálogo do argumento não estivesse de molde a colar-se às almas sensíveis e despertas que ambos eram.
Dizia Pablo Aleixo, o ator no papel de poeta:
- Estou com a minha personagem: Deixamos de acreditar no amor?
Por entre os arbustos aparados dos jardins de Belém viam-se, ao fundo, pequenos fractais que os raios oblíquos do sol pareciam formar ao incidir sobre a superfície agitada do Tejo. O arraial melódico do rancho perdia volume à medida que se afastava, substituído por risos, frases soltas e pregões de familiaridade “Ó Augusto, agora só falta uns pasteizinhos de Belém ali adiante e depois - camioneta!”.
- Amor, no sentido bíblico do termo? - perguntou André Amado, ajudante de despachante.
- Não - esclareceu Aleixo, arreganhando o lábio superior, num gesto pouco percetível que alguns evolucionistas e psicólogos da etologia interpretam como remota atitude de desdém.
- Amor, tipo de gaivota?
- De gaivota?
- Sim, há na nossa costa uma espécie de gaivota, a tridáctila, cujo casal se une para sempre e fica sete semanas a velar os filhotes. Vi no Odisseia…
- Não, pá, o amor romântico. Estou em sintonia com o argumentista. Aquele de que o Alberoni (alguma vez leste os livros dele?) falava no Enamoramento e Amor. O dos amantes, pá, não é esse o amor que interessa?
- Não sei, não penso muito nisso. Os meus pais, ao fim de trinta anos juntos e até à morte da minha mãe, já não era possível saber que características de um pertenciam também do outro. Lembro-me de o meu pai dizer, para aí com uns 55, 56 anos e já sozinho, que em matéria de mulheres só ambicionava uma relação que fosse “quentinha no Inverno e refrescante no Verão”.
Riram-se desta imagem possível do amor tardio, resignado, imagem mais difícil de desmontar do que o cenário da entrada da Cervejaria Virginal, que por altura destas palavras se encontrava já tapado. Eram risos diferentes, em forma e em substância.
Amado continuou:
- Eu, com mulheres, estou como o devoto Senhor dos Passos: sempre um pé atrás! Sempre com um pé atrás e, se posso, nem chego a pegar na cruz.
Riram-se de novo.

5.

Pablo Aleixo riu como se não risse. Achara frouxa e gasta a piada sobre o Senhor dos Passos. Nada o entusiasmava naquela conversa, tudo lhe parecia estranho, não conseguindo perceber se debitava o guião dum filme ou se era a realidade que o fazia falar. Esta incerteza prenunciava certamente a suprema condição da arte: a de se confundir com a vida. Sou eu ou a minha personagem?
Não estava, no entanto, para entrar em grandes aprofundamentos. Alberoni? Afinal é uma leitura banal! Que disse ele que não tivesse já sido dito por Camões, Ronsard, Botto, Eugénio de Andrade? Do amor, fala quem o sente, não quem o disseca ou computa. Achou curioso o pensamento, a tríade silábica da palavra pensada: com-pu-ta. Computai, computai a nossa falha – lá dizia o Alexandre O´Neill.
André Amado, o outro actor, não deveria ser muito amado, desamado, sim, a avaliar pelo turbilhão azedo do seu discurso.
“Pablo Aleixo, meu caro, mulheres só para aquilo que a gente sabe. São criaturas ornamentais, mas perigosas.”
Voltaram ao trabalho no dia seguinte. A anotadora que – é a altura de o dizer – era militante do grupo feminista MERDE (Mulheres de Esquerda Revolucionária em Defesa da Emancipação), percebeu que o desamado actor insistia em pronunciar frases alheias ao script. Foi fazer queixa ao realizador, segredando-lhe mansamente enquanto o seu seio roçava a placa óssea do ombro cineasta.
O realizador soltou um “merde!” perfeitamente audível e compreensível no contexto em que se produzia. Esta interjeição, tinha-a aprendido a usar no tempo em que frequentara o Conservatoire Libre du Cinéma Français, em Levallois-Perret, especializando-se em casting, direction d´ acteurs et mise en scène.
“Merde, merde!”, voltou à carga.
Para o acalmar, a anotadora deu-lhe de beber de uma garrafa de água de Vichy, borbulhante e fresca, tirada de uma caixa que se encontrava a seus pés, embora na verdade se tratasse de água Castelo, com o rótulo alterado por causa de uma cena passada em França que ia ser filmada no dia seguinte.
Houve um momento de perturbação e, coisa surpreendente, Aleixo e Amado avançaram para a cadeira articulada do realizador, em cujas costas de lona se inscreviam as iniciais C. G. com uma estrelinha amarela de cada lado. Pediram para falar com o produtor e ali mesmo declararam, sem delongas, a intenção de se despedirem.
"Porcaria de filme e porcaria de mulheres que aqui trabalham!", vociferou o desamado.
"Uma pena, em certo sentido este trabalho até era poético", disse o Aleixo.
"Poético o caraças", replicou o outro, "quero sair deste filme o mais depressa possível."
Os autores da história a dois teclados foram chamados a depor na azeda circunstância.
"Acabamos com isto?", perguntou ele; "Se calhar é o melhor", disse ela, "tenho muito trabalho a fazer na Faculdade". Selaram o acordo.
Os actores ou actantes, já por conta própria, atravessaram a porta de vidro da cervejaria Virginal e encheram-se da luz do dia. Os carros buzinavam nas ruas, Janeiro doía, a sede fustigava.
"Meu Amigo, e se fôssemos beber umas cervejas a outro sítio?", inquiriu Amado, agarrado à pasta dos despachos.
Aleixo não respondeu. Mentalmente, fazia um poema.
 

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