domingo, março 31, 2013

RESSURREIÇÃO

PIERO DELLA FRANCESCA, Ressurreição (1463-65), Museo Civico di Sansepolcro
 
Segundo a tradição, a figura do soldado adormecido à direira de Cristo, sob a bandeira, é um auto-retrato do pintor. Em certa obra (?) recentemente apresentada à academia, pode ler-se: "É no período histórico do Renascimento que se agudiza no homem o sentimento da efémera duração da vida e que se lhe coloca a necessidade de se perpetuar pela memória. O retrato pictórico surge então entre as elites sociais como uma forma de imortalização, enquanto os artistas, entretanto reconhecidos no seu estatuto de criadores do belo, manifestam uma tendência para se retratarem, tanto em figuração individual como inserida em obras de motivação religiosa. É desta forma que Piero della Francesca se representa como soldado adormecido na Ressurreição (1463-65); que Sandro Botticelli pinta a sua figura na Adoração dos Reis Magos (1475) ao lado de vários membros da família Medicis; e que Albrecht Dürer se faz representar no Martírio dos Dez Mil Cristãos (1495-96), atravessando a paisagem saturada de sofrimento e morte na companhia de um amigo."


sexta-feira, março 29, 2013

O FUMO E O FOGO

Ai disse, disse!

Nicolau Santos
9:58 Quinta feira, 28 de março de 2013             

A reação dos partidos políticos à intervenção de José Sócrates na RTP pautou-se pela afirmação de que não teria dito nada de novo.

Como é óbvio, o que pretendem é desvalorizar o regresso do ex-primeiro-ministro à ribalta. Mas goste-se ou odeie-se Sócrates, vai ser difícil ignorá-lo pela simples razão que, como disse José Miguel Júdice, ele é um político altamente profissional, que está a léguas de distância de Passos Coelho ou de António José Seguro - goste-se ou odeie-se, insisto.

O que disse José Sócrates de novo? Quatro coisas. 1) Fez o mais violento ataque em democracia a um Presidente da República, culpando-o diretamente pela crise política que levou à queda do anterior Governo e à atual solução governativa. Ninguém o tinha dito com tanta brutalidade. Ninguém tinha dito que foi ele a mão por trás do arbusto. Ninguém tinha dito que foi ele o patrono da crise política e desta solução governativa, com a qual está completamente comprometido.

2) Sublinhou que o PEC IV tinha o apoio do BCE, do Conselho Europeu e da Comissão Europeia. Não era claro para toda a gente embora a irritação de Angela Merkel com o chumbo do PEC IV constitua uma possível confirmação. Isso não quer dizer, como é evidente, que o PEC IV seria o buraco da agulha por onde escaparíamos sem ter de pedir um resgate ao FMI. Mas que havia apoio da União ao PEC IV, lá isso havia.

3) Nas parcerias público-privadas, uma das principais acusações que lhe faziam, Sócrates lembrou que das 22 PPP existentes só 8 lhe podem ser atribuídas. E que recebeu encargos de 23 mil milhões com as PPP, que reduziu para 19 mil milhões quando deixou o Governo. Os números são oficiais, estão nos Orçamentos do Estado - e contrariam o discurso que tem sido feito sobre esta matéria.

4) No que toca ao memorando, recusou que o que está em prática tenha sido o documento que assinou. Disse que já houve sete mudanças e que muitas medidas - subida do IVA para a restauração e para a energia, corte de meio subsídio de Natal logo em 2011 e confisco dos dois subsídios à função pública em 2012 - não estavam no documento original, o que é verdade. Se se podia fugir a elas ou seguir outro caminho, é outra discussão que o ex-primeiro-ministro defende, ao dizer ao Governo para parar de escavar o buraco da austeridade.

Na entrevista à RTP-1, Sócrates ajustou contas com o passado e reivindicou o direito a defender a sua versão dos acontecimentos e a ser comentador televisivo, tanto mais que, lembrou, quatro ex-líderes do PSD tem espaços desse tipo nas televisões.

A partir de agora, vai ser um crítico feroz da atuação do Governo. Os seus comentários terão também danos colaterais sobre a atual direção do PS.

José Sócrates disse que não vem à procura de nenhum cargo. Logo veremos. Mas o que ele vem fazer é política pura e dura. Cavaco, Passos e Seguro que se cuidem. 

 
NICOLAU SANTOS, director-adjunto do Expresso.

quarta-feira, março 27, 2013

"A EDUCAÇÃO DO ESTÓICO" - IV


Não quero, Cloe, teu amor, que oprime
Porque me exige amor.  Quero ser livre.

A sperança é um dever do sentimento.

                          RICARDO REIS, Ode 115, 1-11-1930.
 

segunda-feira, março 25, 2013

TEATRO

Vi ontem no São Luiz e gostei. A história de uma cidade arruinada, obrigada a aceitar um resgate económico sob condições de grande indignidade. Vale tudo? Tudo pode ser imposto pelo poder do dinheiro? A peça, de Friedrich Dürrenmatt, foi escrita em 1956, muito antes daquilo que bem conhecemos: Irlanda, Grécia, Portugal e Chipre. Em cena até dia 27, para quem puder.

sexta-feira, março 22, 2013

"presença" (1927-1940) - III

Afonso Duarte (1884-1958), poeta entre a geração do Orpheu e a da presença, colaborou na revista desde o seu primeiro número, tendo nele publicado, logo a seguir ao manifesto “Literatura viva” de José Régio, quatro pequenos textos com o título “Pedras britadas”.
No nº 12, de 9 de Maio de 1928, publicou o interessante artigo “Para uma nova posição estética – Subsídios de arte popular portuguesa” sobre os desenhos ou feituras da arte decorativa de oleiro em Miranda do Corvo.
As preocupações estéticas da revista, como desde cedo se percebeu, não se confinavam à literatura.

quinta-feira, março 21, 2013

SÓCRATES, O MARCELO DA RTP?

Leio no DN que foi contratado como comentador da RTP. Se for verdade, acho justo: - audiências, a quanto obrigais!
Já imagino a turbulência que desabrochará por aí. A verdade é que o último a rir…

"presença" (1927-1940) - II

Ricardo Reis – o das musas Lídia, Cloe e Neera – , seguidor da aurea mediocritas e do carpe diem horacianos, chega à revista em 18 de Julho de 1927, no seu nº 6, com três odes. Uma delas:

Quanta tristeza e amargura afoga
Em confusão a streita vida! Quanto
       Infortúnio mesquinho
       Nos oprime supremo!
Feliz ou o bruto que nos verdes campos
Pasce, para si mesmo anónimo, e entra
       Na morte como em casa;
       Ou o sábio que, perdido
Na sciência, a fútil vida austera eleva
Além da nossa, como o fumo que ergue
       Braços que se desfazem
       A um céu inexistente.


 

terça-feira, março 19, 2013

"presença" (1927-1940) - I

Depois dos modernistas Raul Leal e Mário Saa, Fernando Pessoa e o seu heterónimo Álvaro de Campos chegam à folha coimbrã em 4 de Junho de 1927.
Viver é pertencer a outrem. Morrer é pertencer a outrem. Viver e morrer são a mesma coisa. Mas viver é pertencer a outrem de fora, e morrer é pertencer a outrem de dentro. As duas coisas assemelham-se, mas a vida é o lado de fora da morte. Por isso a vida é a vida e a morte a morte, pois o lado de fora é sempre mais verdadeiro que o lado de dentro, tanto que é o lado de fora que se vê.
Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente.
Os cavalos da cavalaria é que fazem a cavalaria. Sem as montadas, os cavaleiros seriam peões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser.
Fingir é conhecer-se.
 
(Álvaro de Campos, presença nº 5, 4 de Junho de 1927, p. 3)

sexta-feira, março 15, 2013

MANIFESTAÇÃO



O melhor povo do mundo, hoje, em frente dum Ministério das Finanças fortemente defendido.

LÍDIA


Tinha na boca o rumor dos regatos e o hálito das urzes
na solidão das fragas. Percorria-lhe a pele o vento
cálido do desejo, o fervor sensual
dos pousios da carne.

Flor da montanha insciente e pura,
como podia saber, qual vedor de mistérios,
do olho de sangue
que à sua porta crescia?


Nota: Lídia é personagem do conto “Amor”, de Miguel Torga.
 

sábado, março 09, 2013

UMA HISTÓRIA A DOIS TECLADOS


Autores: CRISTINA LEIMART (textos 2 e 4)

               JOÃO ALBERGARIA (textos 1, 3 e 5)

1.

“Pois meu amigo, nas relações amorosas há dois géneros de mulheres: as que não iniciam uma nova relação sem acabarem com a anterior e as que precisam de começar com outra para porem fim àquela que têm. As primeiras são mulheres basicamente honestas, admiro-as de verdade; as segundas não têm carácter, são criaturinhas ínfimas e desprezíveis.”
Quem falava assim era um ajudante de despachante que costumava sentar-se na cervejaria, nas tardes lentas de Verão, à hora em que o pessoal começava a sair dos escritórios e a sede acumulada do dia tomava proporções titânicas. Era um tipo magro, de testa alta e nariz adunco que fazia lembrar uma ave rapace. Trazia sempre consigo uma grossa pasta de couro, refúgio seguro dos processos que, a mando do seu patrão, diariamente levava à alfândega. Sentia-se ali um caso de amor mal resolvido, um desgosto, talvez uma traição, mas quem somos nós para avaliar essas situações que ensombram as almas dos infortunados amantes?
Trincava um tremoço e continuava:
“A mentira mais insidiosa é a que opera por omissão: essa é a grande arte da mentira feminina. Digo-te, meu amigo, são raras as mulheres que simulam orgasmos ou se queixam de enxaquecas quando vão para a cama. Expediente mais comum é deixarem-se ficar a ver televisão até às duas da manhã e só recolherem ao leito conjugal quando estão certas de que o marido dorme o sono dos justos. Enganadoras filhas de Eva!”
O homem que o escutava, um poeta falhado, obtemperava de olhos piscos entre duas trincadas num rissol de camarão:
“A poesia, meu caro, há que ver tudo isso à luz da poesia.

2.

"O amor goza de prazo de validade, não se pode congelá-lo por tempo indeterminado. Há quem admire a relação amorosa como um monumento imponente, quando não passa de construção frágil, uma capelinha vacilante."
“Achas? Em tempos tive uma paixão de caixão ao chão e…”
- Cortaaa! “Uma paixão de caixão ao chão”?? Onde é que isso está no script? Mas isto é alguma novela assente no improviso?
- O texto é monótono…
- Pá. És o argumentista? Não és o argumentista. Ontem também meteste a colher no texto e essa atitude já me começa a trabalhar no estômago. Cinge-te ao guião. Fazes favor.
Iam no décimo primeiro take. A cena, que à partida se oferecia simples, expunha-se a contingências variadas. Primeiro um adereço do cenário, o autocolante a imitar azulejo português sinalizando a “Cervejaria Virginal”, começara a descolar-se, lentamente, por trás da cabeça do ator que fazia de empregado, tirando protagonismo ao seu estudado gesto de poisar o pratinho de tremoços sem ressoar no vidro da mesa - Corta!
Cortaram depois ao ver-se a silhueta de um figurante entrar inadvertidamente no frame, ofendendo, segundo justificação do realizador, o delicado equilíbrio luz -sombra. Cortou-se quando o ator da pasta de couro se atrapalhou em pleno diálogo, falando de “ormas… osmargu… ormasgos… Eh pá desculpem, enrolou-se-me a língua”, corando como uma cereja do Fundão por entre a risota geral. Corta! também quando o ruído de uma avioneta abafou a fala grave do narrador e encrespou os nervos da equipa de filmagens, a quem haviam garantido total ausência de sobrevoos ao local entre as sete e trinta e as dezanove horas desse dia. De contratempo em contratempo, a picuinhice do realizador ainda gritou Corta! no instante em que um close-up revelou os pelos eriçados do braço esquerdo do outro ator, pois a cena, embora invocasse um típico dia de Verão, era filmada logo a seguir aos Reis.
Enfim passava das duas e trinta quando o realizador sentenciou:
- Há mais cenas para filmar, vamos lá. Última tentativa: As Horas sem Maria - Take 12– Ação!

3.

O poeta falhado expendeu, entretanto, algumas considerações sobre mulheres que conheceu e amou: a morgadinha dos canaviais, Emma Bovary, a Barbara de Jacques Prévert.
Regurgitava de gente a Cervejaria Virginal, Vaginal se chamaria se o produtor, atento ao negócio, não tem intervindo no script para corrigir a enormidade.
– Depois deste filme, que me parece poder descambar em algumas ousadias torpes, só investirei em histórias com meninas do tipo Jenny ou Joaninha dos olhos verdes – terá dito.
A anotadora, uma rapariga de cachecol ondulante e saia cor de tijolo da Mango, trocou um olhar de entendimento com o realizador, enquanto a barra zebrada da claquete era movimentada por um assistente, produzindo aquele ruído seco parecido com uma palmadinha nas costas ou um beijo repenicado. Iniciado o take, disse o ajudante de despachante para o poeta falhado:
“Percebes bem pouco de mulheres, meu caro amigo. Fica a saber que as piores gajas são as da alta. Se te decidires a começar com alguma, escolhe uma costureirinha, uma rapariguinha do shopping, uma funcionária municipal com vencimento não superior a 550 euros. O meu patrão é casado com uma tipa cheia de massa, e ainda por cima quinze anos mais nova do que ele, sei bem o que se passa na vida daquele casal, nem me atrevo a falar. Razão tinha o nosso D. Francisco Manuel de Melo na sua carta de guia de casados!”
O poeta falhado contrapunha:
“Mas o amor, meu amigo, e deixamos de acreditar no amor?”
O ajudante de despachante mandou vir mais uma imperial; abriu a pasta de couro para se certificar de que não havia perdido o processo de despacho aduaneiro respeitante às peças para submarinos do Ministério da Defesa; tirou de um dente lascado, com a unha do dedo mínimo, um pedaço de tremoço que o afligia; deu liberdade, em discreto flato, a um congestionante gás estomacal.
Ia finalmente falar, mas foi interrompido pela realização. À porta da cervejaria, em grande algazarra de concertinas, violas, cavaquinhos e passinhos, passava o rancho folclórico de Aranda dos Montes, concelho de Alguidares da Beira, que tinha ido a S. Bento cantar as janeiras ao senhor primeiro-ministro. Era nos dias a seguir aos Reis, lembram-se?

4.

Era nos dias a seguir aos Reis, e o cortejo era a gota de água que fazia transbordar a paciência do realizador. César Gorjão berrou“Corta!”, sibilou “Campónios lambe-botas, de onde é que saiu esta cambada, paciência, o sol já desceu demasiado, temos a luz feita num oito, recomeça-se amanhã” e fingiu ignorar um afago de solidariedade esboçado pela jovem anotadora.
Técnicos e figurantes começaram a dispersar. E o mesmo teriam feito os dois atores de serviço à mesa da Cervejaria Virginal, se o diálogo do argumento não estivesse de molde a colar-se às almas sensíveis e despertas que ambos eram.
Dizia Pablo Aleixo, o ator no papel de poeta:
- Estou com a minha personagem: Deixamos de acreditar no amor?
Por entre os arbustos aparados dos jardins de Belém viam-se, ao fundo, pequenos fractais que os raios oblíquos do sol pareciam formar ao incidir sobre a superfície agitada do Tejo. O arraial melódico do rancho perdia volume à medida que se afastava, substituído por risos, frases soltas e pregões de familiaridade “Ó Augusto, agora só falta uns pasteizinhos de Belém ali adiante e depois - camioneta!”.
- Amor, no sentido bíblico do termo? - perguntou André Amado, ajudante de despachante.
- Não - esclareceu Aleixo, arreganhando o lábio superior, num gesto pouco percetível que alguns evolucionistas e psicólogos da etologia interpretam como remota atitude de desdém.
- Amor, tipo de gaivota?
- De gaivota?
- Sim, há na nossa costa uma espécie de gaivota, a tridáctila, cujo casal se une para sempre e fica sete semanas a velar os filhotes. Vi no Odisseia…
- Não, pá, o amor romântico. Estou em sintonia com o argumentista. Aquele de que o Alberoni (alguma vez leste os livros dele?) falava no Enamoramento e Amor. O dos amantes, pá, não é esse o amor que interessa?
- Não sei, não penso muito nisso. Os meus pais, ao fim de trinta anos juntos e até à morte da minha mãe, já não era possível saber que características de um pertenciam também do outro. Lembro-me de o meu pai dizer, para aí com uns 55, 56 anos e já sozinho, que em matéria de mulheres só ambicionava uma relação que fosse “quentinha no Inverno e refrescante no Verão”.
Riram-se desta imagem possível do amor tardio, resignado, imagem mais difícil de desmontar do que o cenário da entrada da Cervejaria Virginal, que por altura destas palavras se encontrava já tapado. Eram risos diferentes, em forma e em substância.
Amado continuou:
- Eu, com mulheres, estou como o devoto Senhor dos Passos: sempre um pé atrás! Sempre com um pé atrás e, se posso, nem chego a pegar na cruz.
Riram-se de novo.

5.

Pablo Aleixo riu como se não risse. Achara frouxa e gasta a piada sobre o Senhor dos Passos. Nada o entusiasmava naquela conversa, tudo lhe parecia estranho, não conseguindo perceber se debitava o guião dum filme ou se era a realidade que o fazia falar. Esta incerteza prenunciava certamente a suprema condição da arte: a de se confundir com a vida. Sou eu ou a minha personagem?
Não estava, no entanto, para entrar em grandes aprofundamentos. Alberoni? Afinal é uma leitura banal! Que disse ele que não tivesse já sido dito por Camões, Ronsard, Botto, Eugénio de Andrade? Do amor, fala quem o sente, não quem o disseca ou computa. Achou curioso o pensamento, a tríade silábica da palavra pensada: com-pu-ta. Computai, computai a nossa falha – lá dizia o Alexandre O´Neill.
André Amado, o outro actor, não deveria ser muito amado, desamado, sim, a avaliar pelo turbilhão azedo do seu discurso.
“Pablo Aleixo, meu caro, mulheres só para aquilo que a gente sabe. São criaturas ornamentais, mas perigosas.”
Voltaram ao trabalho no dia seguinte. A anotadora que – é a altura de o dizer – era militante do grupo feminista MERDE (Mulheres de Esquerda Revolucionária em Defesa da Emancipação), percebeu que o desamado actor insistia em pronunciar frases alheias ao script. Foi fazer queixa ao realizador, segredando-lhe mansamente enquanto o seu seio roçava a placa óssea do ombro cineasta.
O realizador soltou um “merde!” perfeitamente audível e compreensível no contexto em que se produzia. Esta interjeição, tinha-a aprendido a usar no tempo em que frequentara o Conservatoire Libre du Cinéma Français, em Levallois-Perret, especializando-se em casting, direction d´ acteurs et mise en scène.
“Merde, merde!”, voltou à carga.
Para o acalmar, a anotadora deu-lhe de beber de uma garrafa de água de Vichy, borbulhante e fresca, tirada de uma caixa que se encontrava a seus pés, embora na verdade se tratasse de água Castelo, com o rótulo alterado por causa de uma cena passada em França que ia ser filmada no dia seguinte.
Houve um momento de perturbação e, coisa surpreendente, Aleixo e Amado avançaram para a cadeira articulada do realizador, em cujas costas de lona se inscreviam as iniciais C. G. com uma estrelinha amarela de cada lado. Pediram para falar com o produtor e ali mesmo declararam, sem delongas, a intenção de se despedirem.
"Porcaria de filme e porcaria de mulheres que aqui trabalham!", vociferou o desamado.
"Uma pena, em certo sentido este trabalho até era poético", disse o Aleixo.
"Poético o caraças", replicou o outro, "quero sair deste filme o mais depressa possível."
Os autores da história a dois teclados foram chamados a depor na azeda circunstância.
"Acabamos com isto?", perguntou ele; "Se calhar é o melhor", disse ela, "tenho muito trabalho a fazer na Faculdade". Selaram o acordo.
Os actores ou actantes, já por conta própria, atravessaram a porta de vidro da cervejaria Virginal e encheram-se da luz do dia. Os carros buzinavam nas ruas, Janeiro doía, a sede fustigava.
"Meu Amigo, e se fôssemos beber umas cervejas a outro sítio?", inquiriu Amado, agarrado à pasta dos despachos.
Aleixo não respondeu. Mentalmente, fazia um poema.
 

terça-feira, março 05, 2013

CASSANDRA E A TROIKA - poema de Manuel Alegre

Quis falar com os da troika, mas não lho permitiram
Então Cassandra apareceu na rua
trazia um cartaz para entregar à Troika
saúde educação dizia ela. E havia
em seu olhar a cólera e a beleza
ela era a filha de Príamo aquela
por quem Apolo se apaixonou
nos seus ouvidos passaram as serpentes
e por isso ela ouvia o que ninguém ouvia
tinha vindo para avisar que a Troika
é o novo cavalo falso dentro da cidade
os seguranças rodearam-na mas ela falava
seus longos cabelos soltos sob o sol de Lisboa
clamava por justiça e dignidade
ouvissem ou não ouvissem ela era a sibila
e apontava o cavalo dentro da cidade.

2.3.2013
Manuel Alegre
http://www.manuelalegre.com/