domingo, dezembro 29, 2013

O DITO BAIRRO

A bela língua de Montaigne e Racine no nome do botequim. Do lado direito, em baixo, quatro vitrinas vazias: uma merecida pausa no trabalho ou talvez o contrário.

sábado, dezembro 28, 2013

LICÕES DE ANATOMIA: REMBRANDT E OS OUTROS*

1ª fotografia, o Dr. Nicolaes Tulp explicando aos seus assistentes o funcionamento dos músculos flexores dos dedos (Rembrandt van Rijn, “A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp”, 1656). O cadáver dissecado é de Adriaen Adrianesz, criminoso de vinte e oito anos que sofrera pena de morte por enforcamento.
Note-se a superioridade do trabalho de Rembrandt em comparação com outras “lições de anatomia” pertencentes à colecção do museu. Por exemplo, 2ª fotografia, “A Lição de Anatomia do Dr. Sebastiaan Egbertsz” (1603), de Aert Pietersz, obra esquemática em que as figuras se limitam a posar para o retrato, sem o movimento e a beleza artística da obra do grande mestre.  
* Mauritshuis, Haia; temporariamente no Gemeetemuseum da mesma cidade.

sexta-feira, dezembro 27, 2013

"A PINTURA É POESIA MUDA"

Basta uma única sala do Rijksmuseum para se perceber a genialidade de Rembrandt. Em volta da obra mais conhecida do artista, impropriamente designada como “A Ronda da Noite” (1642) – na verdade o retrato de um cortejo cívico da Corporação de Arcabuzeiros de Amesterdão (Milícia do Distrito II) – , expõem-se vários quadros de outros pintores alusivos a diversas milícias existentes na cidade nos anos 30 e 40 do século de ouro holandês. São obras tecnicamente perfeitas, mas convencionais em termos narrativos e de disposição das figuras. Rembrandt, por seu lado, oferece-nos um quadro de grande expressão poética, sem concessões à estrita representação da realidade. Cada figura – desde o capitão Frans Banninck Cocq a Saskia ou ao militar de um só olho visível que surge por cima da cabeça do capitão (um auto-retrato?) – emociona e desafia o observador. Razão para se repetir o célebre aforismo da Antiguidade: “A PINTURA É POESIA MUDA, A POESIA É PINTURA FALANTE”.

terça-feira, dezembro 17, 2013

HAIA, Maritshuismuseum

O Mauritshuismuseum de Haia está em renovação até meados de 2014, pelo que as suas obras principais podem ser apreciadas no  Gemeentemuseum Den Haag. Porém, a famosa Rapariga com Brinco de Pérola, de Vermeer, está em exposição internacional, só regressando ao Mauritshuis a 27 de Junho de 2014, data da sua reabertura.
Paciência, ficamos com a réplica.
 

AMESTERDÃO, Rijksmuseum

JOHANNES VERMEER (1632-1675), A Leiteira, c. 1660

quinta-feira, dezembro 12, 2013

segunda-feira, dezembro 02, 2013

PAROLES - PALAVRAS

QUARTIER LIBRE

J´ai mis mon képis dans la cage
et je suis sorti avec l´oiseau sur la tête
Alors on ne salue plus
a demandé le commandant
Non
on ne salue plus
a répondu l´oiseau
Ah bon
excusez-moi je croyais qu´on saluait
dit le commandant
Vous êtes tout excusé tout le monde peut se tromper
a dit l´oiseau.


ZONA LIVRE

Pus o bivaque na gaiola
e saí de pássaro na cabeça
Então?
Já não se faz a continência?
perguntou o comandante
Não
já não se faz a continência
respondeu o pássaro
Ah bom
desculpe, pensei que se fazia
disse o comandante
Está desculpado, qualquer um pode enganar-se
respondeu o pássaro.

(Edição bilingue, tradução de Manuela Torres, Lisboa, Sextante Editora, 2007, pp. 278 e 279.)
 

sexta-feira, novembro 29, 2013

LE ROUGE ET LE NOIR

La petite ville de Verrières peut passer pour l'une des plus jolies de la Franche-Comté. Ses maisons blanches avec leurs toits pointus de tuiles rouges, s'étendent sur la pente d'une colline, dont des touffes de 
vigoureux châtaigniers marquent les moindres sinuosités. Le Doubs coule à quelques centaines de pieds
au-dessous de ses fortifications bâties jadis par les Espagnols, et maintenant ruinées. (Stendhal)

quinta-feira, novembro 28, 2013

ALFREDO TRONI (Coimbra, 1845 - Luanda, 1904). A novela "NGA MUTURI"


Uma novela do século XIX (1882) cuja acção decorre na sociedade luandense, focando as relações entre colonos e colonizados.  Diz-nos  Carlos Ervedosa (in Roteiro da Literatura Angolana) que “o Dr. Alfredo Trony, bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, residiu em Luanda durante muitos anos e aqui faleceu em 1904. Fundou e dirigiu os periódicos Jornal de Loanda, em 1878, o Mukuarimi (palavra quimbunda que em português significa linguareiro, falador, maldizente), 188(8)?, e Os Concelhos de Leste, em 1891.”
Discute-se hoje se esta novela é precursora oitocentista da ficção angolana ou se deve ser considerada simplesmente como literatura colonial. O facto é que foi recentemente publicada em Luanda, integrada numa colecção de clássicos da Literatura Angolana.
À parte as diferentes perspectivas que em relação a ela se colocam, é um texto nitidamente influenciado pelo realismo queirosiano que se lê com agrado e proveito. Foi o que fiz recentemente na Bibiloteca Nacional.
 

quarta-feira, novembro 27, 2013

IMAGENS DA RUA

Hoje, ao princípio da noite, no Campo Pequeno. De um lado, às portas da praça, filas de espera para o concerto da banda heavy metal AVENGED SEVENFOLD. Do outro, na margem da avenida, uma manifestação contra a prova de avaliação dos professores contratados. ESTÁ NA HORA, ESTÁ NA HORA DO CRATO SE IR EMBORA!  



 

sábado, novembro 16, 2013

"ORFEU REBELDE"


"Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a vós assim, num desafio:
(...)"

MIGUEL TORGA, Orfeu Rebelde, 2º edição revista, Coimbra, Edição do Autor, 1970.

sexta-feira, novembro 15, 2013

"AMIGOS SINCEROS"

"Mas, se este livro te pertence, é porque o seu problema central foi por nós vivido em Coimbra. O debate entre a inteligência e a vida era o nosso debate. O debate entre a Alma e o Espírito, como diz Claudel, ainda é hoje o nosso debate. Lá tu eras a inteligência, o Espírito, eu era vagamente a vida, a Alma. Depois separámo-nos e tu foste subindo cada vez mais, através do Espírito para a Alma. «Un jour qu´Animus rentrait á l´improvise... il a entendu Anima qui chantait toute seule, derrière la porte fermée, une curieuse chanson», como diz Claudel. Ouviste a canção e ficaste a ouvi-la. Eu ainda não pude entendê-la."
 
Da dedicatória a JOSÉ RÉGIO, Lisboa, 18/4/1941.

terça-feira, novembro 12, 2013

ARTE MURAL

Imagens obtidas ontem em Lisboa, nas Escadinhas de S. Cristóvão, em plena vadiagem festiva da noite de S. Martinho.
 

segunda-feira, novembro 11, 2013

UM TRASLADO POLITICAMENTE INCORRECTO - Do feicebuque


JANE BIRKIN e SERGE GAINSBOURG durante os anos 60. Uma idade de ouro em que não havia défices excessivos e dívidas soberanas insustentáveis, quando os mercados financeiros eram mais pacíficos que Silenos adormecidos. A maioria dos políticos que hoje governam o país eram crianças de tenra idade ou ainda nem tinham nascido e, por isso, não faziam mal nem davam preocupação a ninguém: limitavam-se a dar uns pontapés na barriga da mãe, a obrar o seu cocó na fralda ou, quando muito, a armar alguma cena de arranhões e puxões de cabelos no recreio do jardim-escola. Aquilo, sim, é que eram tempos!
 
 

sexta-feira, novembro 01, 2013

CIÚMES*

Imagem de Santo Expedito numa igreja de Bordéus. Fotografia de Agosto de 2013.
 
– Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
O manancial de epítetos e invectivas jorrava da boca de D. Joanina sobre a pessoa do seu até aí amado esposo João Baltasar Amador, técnico oficial de contas, homem um bocado obeso, com o ácido úrico a vogar em maré alta, pedras nos rins, e, por isso, já com um episódio de cólica renal com direito a urgência hospitalar. Cavalheiro à beira dos sessenta, parecia não quebrar um prato, mas a fazer fé na informante, D. Capitolina da Conceição, senhora muito dedicada às obras de caridade do centro paroquial, andava a partir a loiça toda com uma tal Sofia dos Prazeres, empregada do seu escritório de contabilidade e assessoria fiscal, mulher de boas carnes e olhos vivos, quarenta e cinco anos de idade, e, julga-se, muito carente de homem e de todos os deleites que a espécie costuma proporcionar. Por isso D. Joanina vituperava:
– Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
E alternava as expressões insultuosas com ameaças duras, impróprias de quem vive os mistérios da fé e marca presença em todos os retiros de formação cristã:
 – Faço-lhe um feitiço, ponho-lhe os cornos, lixo-lhe a vida…
Enfim, coisas que se dizem. Não acreditemos na sinceridade de tudo o que ouvimos, palavras debitadas pela cólera, humores atrabiliários a que é preciso dar o devido desconto. Será?
Temos então D. Capitolina da Conceição, senhora mais séria não pode haver, a língua a verter o veneno no ouvido de D. Joanina. Soubera do caso por uma prima que trabalha no dito escritório, mulher honestíssima, incapaz de uma falsidade, e  a esta lhe dissera a empregada da limpeza, que exerce o seu mester a horas em que o pessoal do escritório já saiu, ou ainda não entrou, coisa perfeitamente natural, imagine-se como seria problemático limpar o pó dos computadores em pleno tráfego de dados, com os programas abertos e em laboração: “Dê-me licença por favor, minimize aí esse programa, fique um bocadinho à espera que tenho de passar o pano no teclado.” Enquanto limpa e não limpa, podia desarranjar-se o trabalho informático: um inadvertido delete, um indesejado enter, e seria preciso começar tudo de novo, voltar ao menu do programa, seleccionar a opção, introduzir os dados, gravá-los, premir teclas e afagar o rato, sabe-se lá os custos de tais complicações, o tempo que se perderia para as superar.
Pois parece que naquele fim de dia nem todo o pessoal tinha saído. O Amador mais a Prazeres estavam enrolados no gabinete da gerência às beijocas e aos apalpanços, maneira de falar da citada empregada de limpeza, desculpemos-lhe a linguagem bárbara pois ninguém lhe paga para falar bem, apenas para limpar o pó e passar o chão a pano.
D. Joanina pensou deixar o marido. Contudo, uma decisão tão drástica não seria tomada sem antes se aconselhar com o senhor prior, com o sacristão, com uma ou outra senhora das obras de caridade. Provavelmente iria para casa da irmã, mulher que nunca casara e agora, com a idade, estava a necessitar de uma companhia. Havia de se governar, não podia era viver com a infâmia, ela que o trazia num brinquinho, as camisas de vasto pano sempre engomadas, impecavelmente brancas, até parecia milagre daqueles detergentes da televisão, as calças limpas e vincadas, os casacos, as gravatas, os sapatos, tudo numa beleza. E os mimos ao jantar?,  pescada de maionese, bifes com molho de natas, sobremesas de chocolate. Na cama é que era o diabo: não a puxava o desejo para as delícias da carne , devia ser da menopausa e dos afrontamentos, e o homem ainda por cima estava cada vez mais gordo, aquilo não dava jeito nenhum.
D. Joanina foi falar com o senhor prior.
–Minha filha, obedece ao teu marido e não contribuas para o desmoronamento do santo matrimónio. Se ele te despreza ama-o ainda mais, a ovelha tresmalhada voltará ao redil, infinita é a bondade do Senhor, insondáveis são os seus desígnios, grandes são os pecados dos homens, maior o perdão de Deus, amém.
D. Joanina foi falar com uma senhora das obras de caridade do centro paroquial.
– Do que ele precisa sei eu, é que lhe calce uns patins o mais depressa possível, homens não faltam, velhos e mal-agradecidos, não são nada sem nós. Se o meu me fizesse uma coisa dessas ia logo a andar. Mas também não sei quem é que queria pegar naquilo, só se fosse pelo dinheiro, já não dá uma para a caixa.
D. Joanina foi ainda falar com outra senhora.
– Um marido faz muita falta, minha querida. Depois de um pode vir outro pior. Já não estamos em idade de andar a mudar. Vai ver que aquilo passa. Continue a tratá-lo com afecto, tudo se irá compor. Faça umas orações a Santa Teresinha, a Nossa Senhora, ou, melhor ainda, a Santo Expedito das causas justas e urgentes, e não se meta em bruxarias, não, não fale com o sacristão, é um atrevido sem vergonha, se soubesse o que ele já tentou comigo… Só que não conseguiu nada, sou uma mulher séria, de um só homem, a mim não me toca nem num cabelo. Estar de bem com o Senhor é uma coisinha muito boa, Deus nos livre do pecado.
Ficou confusa com as palavras dos conselheiros. E se não fosse verdade?, se tudo não passasse de um engano e nada de ofensivo tivesse sido feito pelo esposo? Nunca se queixara dele, sempre parecera pessoa de uma só cara, mas a realidade é que não a procurava há muito tempo, adormeciam de costas voltadas, estava completamente desinteressado. Mesmo um homem na mudança da idade havia de dar algum sinal de si. Só que não dava, andava a governar-se por outro lado, isso é que era. Ultimamente era muito exigente com a roupa interior, tinha mandado comprar cuecas novas, de linha moderna, artigo de primeira qualidade, bem difícil de encontrar em medida tão avantajada como a sua. E enquanto se alongava nestas conjecturas, o ciúme mordia-lhe o estômago como uma úlcera brava. A pouco e pouco dissipavam-se as dúvidas, apagavam-se os ses e os mas. Não há fumo sem fogo. E repetia para si:
– Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
E foi aconselhar-se com o sacristão, homem seco de carnes, cinquenta anos, ainda vigoroso, um sorriso insinuante. Palavra atrás de palavra, a conversa a descair para a desgraça, trocam-se as voltas ao tema.                                            
Foi na sacristia, encostada ao arcaz, sob a imagem de Santo Expedito, taumaturgo das causas justas e urgentes, imagem trazida de França por uns peregrinos de Lurdes, ali deixada por não haver nicho vacante na nave da igreja. Era à hora em que devia estar na cozinha a preparar o jantar do marido, que logo chegaria a casa com a fome do costume, cansado do dia de trabalho no escritório de contabilidade e assessoria fiscal, regurgitando débitos e créditos, retenções na fonte,  demonstrações de resultados, descontos de letras, receitas financeiras correntes, estornos, acréscimos e diferimentos, extractos bancários, juros acumulados, amortizações e reintegrações. Mas hoje teria de esperar, paciência, já estavam fechadas as portas da igreja, não passaria daquele dia, causa justa e urgente, ali encostada ao arcaz da sacristia, sob o olhar esbugalhado do santo empunhando a cruz milagreira com a palavra latina hodie, que quer dizer hoje e não amanhã, incrédulo e infinitamente pesaroso com o que os seus olhos viam, o distúrbio da alma e a fraqueza da carne, o engano, a traição, tão atormentado como no dia em que se deparou com o corvo maligno a tentar desviá-lo dos caminhos de Deus. E, sacrilégio supremo, o sacristão paramentado como se fosse ajudar à missa, e a pecadora repetindo incessantemente numa litania ímpia aquele cúmulo de palavras contra o legítimo esposo:
– Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu….
 
* Publicado neste blogue em 2006. 2ª edição.
 


terça-feira, outubro 29, 2013

O PLUMITIVO E A SUA FAINA


“Ocorre-me”, replicou Watson, “o risco que corriam os amantes de outros tempos quando trocavam cartas entre si. Veja-se a Luiza de O Primo Bazilio ou o episódio da carta perdida em A Princesa de Clèves. Mas hoje, os riscos são maiores. A agilidade e rapidez da comunicação favorecem a descoberta do segredo.”
            Depois de assim ter falado, não sem alguma estupefacção de Silvério Hermes pelas referências literárias introduzidas no discurso, a figura de Watson desapareceu por uns instantes atrás da nuvem de fumo do seu cachimbo.
 

segunda-feira, outubro 28, 2013


RESULTADO DE UM DOMINGO MAIS VIVIDO QUE CONVIVIDO, estas fotografias ilustram uma atracção pelos comboios e as estações ferroviárias, locais de chegadas e, tantas vezes, de partidas sem retorno.
Lembro-me sempre de Antonio Muñoz Molina e do seu livro Sefarad: “É num comboio que um homem relata a outro a história que conta Tolstoi na Sonata Kreutzer”, ou, referindo-se a Primo Levi, o terror que sentia o escritor, pouco antes de morrer, perante “os vagões de carga selados que às vezes via nas linhas abandonadas das estações.” Durante cinco dias, em Fevereiro de 1944, Primo Levi  viajou de comboio para o campo de morte de Auschwitz. Sobreviveu.
Interessante é a referência à estação ferroviária de Gmünd, na fronteira da Checoslováquia com a Áustria. Nesta estação, “Franz Kafka e Milena Jevenska encontravam-se clandestinos no intervalo de tempo dos horários dos comboios, na exasperante brevidade das horas que se esgotavam enquanto se viam, enquanto subiam para um quarto inóspito do hotel da estação, onde o andamento próximo dos comboios fazia vibrar os vidros da janela.”

 

terça-feira, outubro 22, 2013

terça-feira, outubro 15, 2013

CARTA DE FERNANDO PESSOA "ÀS SUAS DISCÍPULAS"

“Minhas queridas discipulas, desejo-lhes, com um fiel cumprimento dos meus conselhos, inummeras e desdobradas volupias com o animal macho a que Egreja ou o Estado as tiver atado pelo ventre e pelo appelido.
É fincando os pés no solo que a ave desprende o vôo. Que estas imagens, minhas filhas, vos seja a perpetua lembrança do unico mandamento spiritual.
Ser uma cocotte, cheia de todos os modos de vicios, sem trahir o marido, nem sequer com um olhar – a volupia é isto, se souberdes conseguil-o....
Ser cocotte para dentro, trahir o marido para dentro, stal-o trahindo nos abraços que lhes daes, não ser para elle o sentido do beijo que lhes daes –oh mulheres superiores, ó minhas mysteriosas Cerebraes – a volupia é isso.
Porque não aconselho eu isto aos homens tambem?... Porque o Homem é outra especie de ente. Se é inferior, recomendo-lhe que use de quantas mulheres puder: faça isso e sirva-se do seu desprezo quando [ ]. E o homem superior não tem necessidade de nenhuma mulher. Não precisa da posse sexual para a sua volupia. Ora a mulher, mesmo a superior, não aceita isto: a mulher é essencialmente sexual.”

FERNANDO PESSOA, “Correspondência Inédita”
Organização de MANUELA PARREIRA DA SILVA,
Lisboa, Livros Horizonte, 1996, pp. 198-199.