segunda-feira, junho 18, 2012

LUZ COADA POR FERROS

Leio o “Discurso Preliminar” que precede as Memórias do Cárcere. São cerca de trinta páginas que revelam, para além da reconhecida imaginação novelística, o pendor autobiográfico e memorialista da escrita de Camilo. 
“O criminoso é fácil de conhecer, porque tem buracos na cara.” – Assim rezava uma carta, saída de fonte da Justiça, que intimava os aguazis a deterem o adúltero nas Caldas das Taipas.
Em Amarante, por onde passara o fugitivo, são-lhe pedidos versos para as festas do Coração de Maria da irmandade de S. Gonçalo.
“– Queríamos uns versinhos para as cavalhadas do Coração de Maria.”
“ – Pois o Coração de Maria é festejado com cavalhadas em Amarante!? Conte-me isso, mestre. Como é que a irmandade mete cavalos e poetas na sua devoção?”
Pinto de Magalhães e Fanny Owen não são esquecidos: “Vi agora os retratos de ambos. Sempre que os contemplo, creio que me falam e dizem: ‘E tu vives ainda! (…)’.”
As Memórias do Cárcere foram escritas por Camilo “na convalescença duma grande enfermidade moral” (prefácio da segunda edição). Foram 384 dias que o escritor romântico passou na cadeia da Relação do Porto (em regime de prisão não muito severo, diga-se), conhecendo homicidas, ladrões, moedeiros falsos e outras castas de delinquentes. Escreveu sobre eles talvez com mais imaginação que preocupação realista. E também sobre si, memórias de si mesmo, autobiografia: no capítulo XII  evoca os amigos que o não esqueceram durante o longo tempo de provação; e no seguinte refere o encontro fortuito com a guerrilha miguelista do tenente Milhundres,  quando regressava de Coimbra a Vila Real, na companhia de um colega, por a universidade ter sido encerrada devido à revolta da Patuleia.
A luz que entrava da cadeia da Relação do Porto era uma “Luz Coada por Ferros”, titulo do livro de Ana Plácido, também ela sujeita aos rigores da reclusão. Uma frase em tudo camiliana.
CAMILO CASTELO BRANCO, Mémórias do Cárcere, fixação do texto e prefácio de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 2001.

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