quarta-feira, maio 02, 2012

ENSAIO SOBRE A CUPIDEZ

Loja Pingo Doce da Av. Almirante Reis, de portas fechadas e sob aparato policial, à hora em que desfilavam os manifestantes do 1º de Maio.

As cenas reais bem poderiam pertencer a um romance que Saramago nunca escreveu, mas que seria no género de “Ensaio sobre a Cegueira” ou “Ensaio sobre a Lucidez”: uma turba ávida, descontrolada, lançando-se sobre as prateleiras dos supermercados para beneficiar de um desconto de metade do preço nos produtos adquiridos. Na voragem cúpida, levam o que precisam e o que não precisam, porque o importante é atingir o valor mínimo que dá direito ao desconto. Os gerentes dos supermercados exultam, os clientes grunhem e a polícia é chamada para serenar os ânimos.
E assim queimam um dia de descanso, que daria para passear ou ir ao cinema, em longas filas de espera para os talhos e peixarias, roubando dos carrinhos dos competidores produtos já esgotados nas prateleiras, envolvendo-se em desacatos, soltando impropérios, carregando as bagageiras dos automóveis para logo voltarem de olhos baços ao rodízio consumista.
O gerente duma loja de Sintra, entrevistado pela televisão, dizia que os clientes tinham respondido positivamente ao aproveitarem a boa oportunidade de negócio que se lhes deparara. E pelo negócio lá se foi o ócio, pela picanha e pelo uísque de 12 anos perderam um feriado, trocaram o ar fresco e luminoso do dia pelas luzes das lojas e o delírio dos escaparates.
Tudo isto enquanto o primeiro-ministro  dizia tranquilamente, numa assembleia do seu partido,  que os portugueses deveriam preparar-se para níveis de desemprego ainda mais altos, para maior austeridade.  Esta gente que irá suportar mais desemprego tem a austeridade de que precisa e no poder os governantes que merece. É sabido que nas próximas eleições vão tirá-los de lá, não por convicções políticas, mas por simples ganância: porque lhes foram aos ordenados e ao preço do bife.  Se o merceeiro Alexandre Soares dos Santos viesse a candidatar-se, teria fortes probabilidades de ganhar.

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