segunda-feira, maio 07, 2012

NO PIANO BAR


Gosto muito de cama, disse ela, a meio de uma conversa banal sobre um romance de Philip Roth. Distraído como andava, ele começou por pensar que se tratava da fala de alguma personagem, ali trazida à conversa para mais viva representação da trama romanesca. Mas não, logo percebeu que não era possível, que a amiga falava na própria voz, e, como homem sério não tem ouvidos, fez-se desentendido, tricando o caju e escorrendo a cerveja, enquanto o pianista martelava um “Summertime” angustiado e frouxo por entre espirais de fumo que  morriam nos exaustores cravados no tecto.
Estava cansado e com vontade de dormir. Passara a tarde de sábado em Cascais, numa tertúlia vagamente literária, a que se seguira um jantar pacato com um amigo. Depois, fizera a viagem de comboio até Lisboa, as luzes da margem escorrendo para o rio com o perfil luminoso da velha ponte ao fundo,  e agora ali estava, duas e tal da manhã, com uma cerveja fria na mesa em frente de uma mulher quente que lia Philip Roth e gostava muito de cama.
Há muito que estaria em casa se o telefone não tivesse tocado pelas dez e tal. Sim, estou em Lisboa, acabei de sair do comboio no Cais do Sodré. Que coincidência, retorquiu ela, eu estou na Brasileira, é só subir um pouco. De aqui a dez minutos, então, anuiu ele.
Andava muito ocupado com a escritura de um romance. Já ia em trinta e duas páginas, nunca tinha chegado tão longe, mas  começava a baralhar-se com os desígnios das personagens e os contornos da história, como se a vida nunca lhe tivesse ensinado nada e nada conseguisse tirar dela para encher as suas fracassadas ficções. Queria contar a história de dois amantes, mas não percebia nada de tal matéria. O escritor só fala do que conhece, diz-se, e todas as relações amorosas lhe tinham passado ao lado, como se apenas as tivesse vivido nas margens do rio (torrencial) do amor, sem nunca chegar a meter os pés na água. A negação de Heraclito. O telefonema da amiga quase lhe soube bem, quem sabe se não seria um empurrão para conseguir sair da melancolia letárgica em que o seu romance se encontrava.
A amiga não era má de todo. Bons seios, boas pernas, um rosto razoavelmente conservado à custa de muito cremes hidratantes e especiosos esteticismos. Poderia vê-la até como uma mulher sensual, naquela acepção mais óbvia da palavra, se ele não andasse tão arredado de vertigens sensualistas e mais dado a arroubos contemplativos da beleza pura. E lá foi falando de Philip Roth, que mal conhecia, dos seus romances e ensaios, grande virtude e prova de inteligência é conseguirmos  falar de livros que nunca lemos.
Ainda tentou desviar a conversa com impertinentes referências ao romance psicológico, à lírica barroca, à poesia licenciosa de Catulo e às odes de Horácio. Ela julgou que estava a topá-lo, Philip Roth ali à mão, e passou ao ataque: gosto muito de cama.  Ele esmerdou-se, palavra que não deve vir no dicionário Houaiss mas de que qualquer jongleur do amor conhece bem o sentido.
O gajo é parvo, pensou ela, ou então já não aguenta uma noite com uma mulher. Olhou para o relógio largo que usava no braço direito, fechou a pequena cigarreira prateada, ajeitou a saia verde orlada de preto, sacudiu o colar, afagou o peito como se buscasse no gesto uma ínvia compensação de algo, e fez questão de pagar a conta. Fui eu que convidei, disse.  
Saíram do piano bar. Ele acompanhou-a ao parque de estacionamento, apanhou um táxi e rumou a casa. Apetecia-lhe dormir, descansar até altas horas de domingo. À sua maneira, também ele gostava muito de cama.

quinta-feira, maio 03, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (11)


Sinto que passaste por mim como um pequeno rio
de que apenas ouvi o murmúrio, ou como a música
dum coreto distante trazida no bojo dos ventos
em entrecortados soluços. Nunca soube nada de ti,
nem das ciências inexactas do amor. Sei, no entanto,
que me enchias o tempo duma alegria breve,
eternizada de cada vez que chegavas a casa
com a singela disposição dos teus modos
no sorriso do olhar e da voz, no anel da tua cintura
que o fogo-fátuo da minha carne nunca tangeu
na plenitude. Por isso escrevo o poema deste tempo
de reencontro com o que nunca fui, nesta sala
povoada de livros, pó e algumas sombras,
no prazer quase mórbido da tua ausência.

"CAPITÃES DA AREIA"

                                      Do filme de Cecília Amado                                                          
  Museu do neo-realismo em Vila Franca de Xira
Romance engajado e militante duma literatura que influenciou decisivamente o neo-realismo português, conforme pode ser apreendido na célebre polémica de 1939, nas páginas da “Seara Nova”, entre José Régio e o jovem Álvaro Cunhal.  Já houve quem notasse a correspondência de “Esteiros” de Soeiro Pereira Gomes (publicado em 1941), um romance de meninos operários, com a narrativa dos meninos da rua de Salvador da Bahia: Gineto no Ribatejo e Pedro Bala na região nordestina do Brasil. Homens que nunca foram meninos ou meninos que sempre foram homens, a contraditória disjuntiva que exprime uma opressão social e política que teve lugar de ambos os lados do Atlântico. Por isso é bom ler Jorge Amado no ano do seu centenário e tentar conhecer o neo-realismo português cujo romance inaugural – “Gaibéus” de Alves Redol – se publicou em 1939, dois anos depois de “Capitães de Areia”.

quarta-feira, maio 02, 2012

ENSAIO SOBRE A CUPIDEZ

Loja Pingo Doce da Av. Almirante Reis, de portas fechadas e sob aparato policial, à hora em que desfilavam os manifestantes do 1º de Maio.

As cenas reais bem poderiam pertencer a um romance que Saramago nunca escreveu, mas que seria no género de “Ensaio sobre a Cegueira” ou “Ensaio sobre a Lucidez”: uma turba ávida, descontrolada, lançando-se sobre as prateleiras dos supermercados para beneficiar de um desconto de metade do preço nos produtos adquiridos. Na voragem cúpida, levam o que precisam e o que não precisam, porque o importante é atingir o valor mínimo que dá direito ao desconto. Os gerentes dos supermercados exultam, os clientes grunhem e a polícia é chamada para serenar os ânimos.
E assim queimam um dia de descanso, que daria para passear ou ir ao cinema, em longas filas de espera para os talhos e peixarias, roubando dos carrinhos dos competidores produtos já esgotados nas prateleiras, envolvendo-se em desacatos, soltando impropérios, carregando as bagageiras dos automóveis para logo voltarem de olhos baços ao rodízio consumista.
O gerente duma loja de Sintra, entrevistado pela televisão, dizia que os clientes tinham respondido positivamente ao aproveitarem a boa oportunidade de negócio que se lhes deparara. E pelo negócio lá se foi o ócio, pela picanha e pelo uísque de 12 anos perderam um feriado, trocaram o ar fresco e luminoso do dia pelas luzes das lojas e o delírio dos escaparates.
Tudo isto enquanto o primeiro-ministro  dizia tranquilamente, numa assembleia do seu partido,  que os portugueses deveriam preparar-se para níveis de desemprego ainda mais altos, para maior austeridade.  Esta gente que irá suportar mais desemprego tem a austeridade de que precisa e no poder os governantes que merece. É sabido que nas próximas eleições vão tirá-los de lá, não por convicções políticas, mas por simples ganância: porque lhes foram aos ordenados e ao preço do bife.  Se o merceeiro Alexandre Soares dos Santos viesse a candidatar-se, teria fortes probabilidades de ganhar.