quinta-feira, março 29, 2012

PRAIA DA SALEMA

Leio no DN online uma notícia extraordinária:  – que a praia da Salema (Vila do Bispo) fora eleita como uma das melhores praias secretas do planeta pela revista americana “Travel&Leisure”, especialista em viagens e lazer.
Para mim, que sempre fui avesso às praias do Allgarve turístico (excepção feita aos Olhos de Água e à Falésia), há trinta e tal anos que tenho a praia da Salema como nada secreta.
Memórias de tempos em que nela fazia férias de Verão e de Páscoa, o ar carregado de sal, o perfume das estevas, e, em qualquer baiuca, o trago de medronho genuíno, esse sim, hoje secreto.

quinta-feira, março 22, 2012

A FICÇÃO E O MUNDO

Umberto Eco
Leio um texto de Umberto Eco: “O Estranho Caso  da Rue Servandoni”, relacionado com Os Três Mosqueteiros de Dumas, quinto capítulo de Seis Passeios nos Bosques da Ficção. Trata dos pactos ficcionais, das relações entre ficção e História, entre ficção e mundo real. E então coloca-se a seguinte questão: que diria o leitor de um romancista que numa das suas obras colocasse o Empire State Building em Berlim e a Alexanderplatz num bairro de Nova Iorque?  O processo de suspensão da incredulidade, que leva o leitor a aceitar o lobo falante do Capuchinho Vermelho ou a metamorfose de Gregor Samsa no livro de Kafka, parece não funcionar aqui. A não ser que se trate de ficção do género nonsense… Isto deu-me umas ideias para um certo trabalho sobre A Velha Casa.
ECO, Umberto – Seis Passeios nos Bosques da Ficção, DIFEL, 1995, pp. 103-122.

terça-feira, março 20, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (10)


Leio nas estrofes dum poema de Apollinaire
a inelutável revogação do amor: um rio
que passa na distância das margens
sob a sombra oblíqua duma ponte. Nas águas
passadas de outro rio, procuro os  lugares
e  paisagens de antigas viagens: fotografias
guardadas em velhos álbuns,
carcereiros taciturnos
de um tempo que só a imaginação
aprisiona : memórias
de quando os teus cabelos dormiam
espalhados na minha almofada
e as noites flamejavam como vitrais
o abraço cálido dos corpos.


Nota: a folha em que se encontra este poema está datada de forma singular: "Paris - Pont Mirabeau, Primavera - 9 de Abril do ano derradeiro".

sexta-feira, março 16, 2012

VOU LENDO: "O BARÃO DE LAVOS" (1891)

E assim, na nudez discreta da noite, na voluptuosa penumbra da saleta, aqueles dois esposos, na aparência tão próximos, ambos novos, ambos amantados na carícia do mesmo ambiente perfumado e morno,  obstinavam-se longe, muito longe um do outro; ele galopando o destrambelho do seu vício; ela deliciando a imaginação e envenenando os sentidos na tragédia dissolvente de Madame Bovary.
ABEL BOTELHO, O Barão de Lavos, Lisboa, Edição “Livros do Brasil”, s/d, p. 22.

terça-feira, março 13, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (9)

Aprendi com Orfeu que não poderei
olhar para trás, e que em frente há
a dolorosa extinção do meu canto,
o pérfido baile das bacantes.
Por isso não direi o amor
no pretérito do que fui, ou no futuro
daquilo que não voltarei a ser.
Entrego-me ao condicional
de todas as conjugações como
quem abre uma porta na pedra líquida
dos verbos, bastando-me sentir
que talvez continues em mim
tão presa e livre
como a folha de árvore que se solta e voa.

segunda-feira, março 12, 2012

PIAZZA DI SPAGNA

O editor deste blogue fotografado na escadaria da Piazza di Spagna a fazer horas para o concerto da Laura Pausini.

sexta-feira, março 09, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (8)

Conheço todas as palavras das cartas
que não me escreveste. Palavras cheias,  
tão copiosas que mal caberiam
dentro dos livros que levaste de casa,
ou dos cadernos dos tempos da escola
de que te esqueceste,  talvez por já nada
dizerem de ti nem serem capazes de falar
dos teus novos sonhos. Encontro  essas
palavras em cada verso que faço, em cada
linha que imagino escrever-te, e sinto-as
queimarem-me os olhos e ferirem-me
os dedos: palavras aparentes que fustigam
e doem, pássaros roxos voando em sombra
sobre as searas descontentes.

ESPÓLIO DE JOSÉ RAFAEL (1947-2010)

Uma das raras fotografias de JOSÉ RAFAEL. Tirada em local e data que não conseguimos determinar.

quinta-feira, março 08, 2012

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

APROVEITANDO UMA ABERTA
                              Para António Nobre
“Ó virgens que passais ao sol-poente”
com esses filhos família,
pensai, primeiro, na mobília,
que é mais prudente.
Sim, que essa qualidade,
tão bem reconstituída,
nem sempre, revirgens, há-de
proporcionar-vos  a vida
que levais.
Se um tolo nunca vem só,
quando não vem, não vem mais
ou vem, digamos, por dó…
E o dó doi como um soco,
até mesmo quando parte
de um tolo que a vossa arte
promoveu de tolo a louco.
Eu quando digo mobília,
digo lar, digo família
e aquela espiada fresta,
aberta, patente, honesta,
retrato oval da virtude,
consoladora do triste,
remanso, beatitude
para o colérico em riste.
Assim, sim, virgens sensatas!
(Nos telhados só as gatas…)
Pensai antes na mobília,
honestas mães de família,
E aceitai respeitos mil
do vosso   
              Alexandre O’ Neill!

("Poemas com endereço", Lisboa, Livraria Morais Editora, 1962, pp. 32 e 33)

Poema datado, mesmo assim digno de ser lembrado neste dia de celebrações emancipadoras. Tenho o livrinho comigo, uma jóia sem preço.

terça-feira, março 06, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (7)


Nunca percebi o que se passou naquela noite,
no hotel perto da estrada onde ficámos
depois de uma viagem de horas por entre
clâmides de searas  sob a luz e o vento
das planícies do sul. Os faróis dos carros
projectavam súbitas claridades nas paredes
do quarto, relâmpagos breves e surdos
como os de uma trovoada dentro de um sonho.
E então vi que choravas, um choro silencioso,
inexplicado, mas tão real que nos tolheu
por muito tempo os gestos do amor.
Penso hoje que teria bastado uma palavra tua,
ou minha, um compreensível sinal contra o silêncio
absurdo daquele prenúncio de distância.

sexta-feira, março 02, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (6)

Embora não o deseje, sei que me esperas
numa qualquer praça do tempo, e que ainda
conversaremos como dois amigos que se reencontram
depois de uma viagem ou de uma longa doença.
Mostrar-te-ei os meus versos, e tu me contarás
cada uma das ficções com que adornaste
a indiferença dos dias. Continuo a acreditar na verdade
singular da poesia, e apenas espero  ver cumprir-se
o meu livro para que possa entregar-me
ao silêncio definitivo de quem já fez
o que tinha a fazer.  Gostaria que fosse
por uma manhã cálida de Novembro, ao expirar
do Outono,  com os salgueiros respirando
nas margens do rio a prosopopeia dum choro.