segunda-feira, março 28, 2011

BRUNO, MARCELO E A ESFINGE


Em que é que Bruno de Carvalho, candidato derrotado à presidência do Sporting Clube de Portugal, se compara com Marcelo Rebelo de Sousa, professor universitário e abalizado analista político da TVI? Numa coisa muito simples: na confiança que ambos têm nas sondagens eleitorais!

Bruno de Carvalho vai impugnar as eleições que perdeu porque uma sofisticada sondagem feita à boca das urnas lhe dava uma vitória que não veio a ser confirmada pela contagem dos votos. (A razão é mesmo esta, é só ouvir com atenção as declarações do frustrado dirigente). Marcelo, por sua vez, exulta com a sondagem encomendada pela TVI e já dá como certa a vitória que à distância de dois meses ainda terá de ser provada pelos resultados das urnas.

Tem-se dito que o estado calamitoso do nosso futebol é um reflexo da situação política do país. Eu neste momento tenho dúvidas: já não sei se é a política que influencia o futebol, ou se é o futebol que influencia a política.

O mais surpreendente é que segundo a lúcida análise do professor, o país não está preocupado com aumentos de impostos ou outros sacrifícios – o país não quer é este primeiro-ministro! Com outro que venha, todos os pec passarão sem problemas, se calhar até com sorrisos compreensivos de sindicalistas e deputados da esquerda mais empedernida – ilações que aparentemente podem ser retiradas da mesma sondagem!

Esperemos que em Maio ou Junho, na data que vier a ser marcada pela esfinge de Belém, os resultados das urnas se afinem pelas previsões das sondagens. Evitaríamos dúvidas e dificuldades para o país e, sobretudo, poderíamos vir a aspirar, num futuro quiçá não muito distante, a algo de tranquilizante para a nossa democracia: dispensar de vez o complexo e dispendioso processo das eleições, passando a nomear, através de sondagens cientificamente realizadas, todos os nossos deputados, todos os nossos autarcas, o presidente da república, os dirigentes desportivos, os conselhos directivos das escolas, as administrações dos bancos e das empresas públicas, os chefes das quadrilhas e os estados-maiores das forças armadas, enfim, toda a gente importante em cujas mãos nos entregamos como cordeirinhos, esperando que não nos façam muito mal e nos deixem continuar a ver o futebol, as análises do professor Marcelo, as telenovelas, os concursos das crianças cantantes na TVI, as marchas populares, tudo aquilo que não dá que pensar e nos prepara para, de seis em seis meses, com uma regularidade democrática, exercermos cada vez com mais consciência o nosso dever de eleitores.

segunda-feira, março 21, 2011

A CANÇÃO

À versão de Marisa Monte e a esta para que aqui remeto o visitante amigo, prefiro a de um fadista português que desgraçadamente não consigo encontrar no Youtube.
Depois de uma manhã em que li duas páginas das Confissões de Rousseau e acabei de preencher com náusea os questionários dos Censos-2011, descobri que tinha a máquina de lavar roupa avariada. Perante tanta infelicidade, só uma canção como esta me pode confortar.

Os versos:

Se ela me deixou a dor é minha só
não é de mais ninguém...

A sala o quarto a casa está vazia
a cozinha o corredor
se nos meus braços ela não se aninha
a dor é minha a dor…

etc. etc. etc.

Oiçam bem a letra e a música em:
www.youtube.com/watch?v=J9Yir7AXbXo

E atrevam-se lá a dizer que não é bonito!

segunda-feira, março 14, 2011

A uma carta responde-se sempre


Cristina Leimart no "Emoções Básicas":



Domingo, 13 de Março de 2011

Resposta a "Uma Carta" do Disperso Escrevedor

Bom e paciente amigo

Anda uma pessoa na sua vidinha mediana, altos e baixos, uns dias sorridos outros de sobrolhos franzidos, quando lhe salta ao caminho uma carta chamando-lhe deusa. Abana qualquer uma! Responde-se, e é como atar uma pedrinha ao cordel de um balão de hélio – retira-lhe a graça e a elevação.
Ainda assim, não resisto. Desde logo, à cortesia em ver-se o meu amigo de idade para ser meu pai. Com a nossa década e picos de diferença, já o imagino há cinquenta anos, robustecido pelas vastidões da lezíria, avesso a amores aguados mas abraçando, se não os minúsculos prazeres epistolares, certamente as emoções básicas da física do amor – e tão jovenzinho, o que só lhe fica muito bem.
Quanto à minha história com ‘hi’, pu-la a girar em torno de um manuscrito, quando se trata, em rigor, de um teclaescrito, dada a raridade atual do uso da caligrafia. Do tal Celúlio é que ainda pouco sei. Outro dia vi um gorgulho pequenino, redondo e tostado escapulir-se de um saco de arroz na minha despensa, e afinal era o Celúlio à saída da empresa de reciclagem. Tenho-o como pessoa de muitos planos, com quem a vida sempre desconversou. Vejo-lhe a alma cheia de tiques, um caminho povoado de amigos incompletos. Aquela vida junto ao tapete do enxovalho, um pouco espelho de como o país anda agora, e andava no tempo do Eça e no de D. Sebastião, não lhe é salutar. Enfim, oxalá me engane, que pareço uma vidente lendo uma bola de cristal.
E também parece que a alma lusa de Celúlio se compensa como pode, indo embeber-se naquela pura ilusão do paraíso bibliotecário. Aforismo inteiramente da lavra dele, já agora, embora eu tenha lá metido à socapa o meu arado. E depois não o estou a ver homem de citações, pois sobre livros selectos ele é ainda menos informado do que eu. Mas coitado! Como se as bibliotecas não fizessem parte do mundo. Cheias de silêncios forçados, de sons a aguardar vez, de vozes faladas em standby para que as palavras escritas possam respirar e brilhar, de folhas oprimidas por falto de uso, outras gastas por mãos ávidas, olhos fartos de letras, frases inteiras arranhadas pelas patitas dos ácaros, e pó, um pó insidioso e calado a picar leitores alérgicos. E, abaixo desses silêncios, remoinhos indizíveis, uma verdadeira tectónica das características humanas: desejos desencontrados, pulsões contidas entre leitores, intrigas e atrações entre funcionários, invejas e paixões entre personagens, empatias funcionários-personagens, e até vice-versa, sussurros de cordel, olhares atravessando mesas de leitura e que poeta algum descreveu, etc, etc.
Eu percebo o Celúlio. Adoro a superfície do silêncio acariciando-me os sentidos e o espírito, esse morno mar de silêncio com ilhotas de trabalho solitário, concentrado que é uma biblioteca. Parece que estamos ali à beira de um salto quântico qualquer. Adoro a cortesia vaga, formal nas vozes microdecibélicas de leitores e funcionários. Cada biblioteca, da mais insignificante numa estante de colectividade local, à de Alexandria ou à do congresso americano, tem o seu silêncio endémico, a sua exclusiva linguagem freática. Não sei se o Celúlio vê a coisa assim. É um bocado limitado. Possui uma mente arrumada, de matriz binária, à engenheiro. Ele nem igrejas, tão ricas de história, cultura e espírito, aprecia visitar, veja lá! Embirra que lhe leiam talhas douradas e painéis de azulejos, porque chega ao terceiro e já não se lembra do que lhe disseram do primeiro. Pronto, é como é.
E pronto também para nós, que esta resposta já vai longa e o meu amigo tem mais que fazer.
Obrigada pelas palavras. Um grande abraço.


PS: Quanto às formalidades do novo acordo, que fazer? Saiba que estrebuchei q.b., disposta até a descer a avenida da Liberdade em prol da tradição, se tem havido uma convocatória no facebook. E se não resisti mais, foi por guardar a energia dos meus estrebuchos para causas mais promissoras. Dizem que é uma atitude de sabedoria, e eu acredito.

sábado, março 12, 2011

GERAÇÃO À RASCA

Hoje, na manifestação

Ironizar sobre os impasses da situação social, como fazem os jovens do cartaz, é uma demonstração de lucidez. É meio caminho andado para se compreender que o trabalho precário, o desemprego dos licenciados e o desemprego em geral são produtos do capitalismo flexível que se estabeleceu à escala global durante as últimas décadas.
Podemos fazer alguma coisa cá dentro? Sim, mas pouco.
Mesmo assim, vale a pena descer à rua. É o nosso direito à utopia!

terça-feira, março 08, 2011

O ROMANCE E O REAL

Tentava escrever um ensaio sobre o roman à clef[1] na literatura portuguesa da segunda metade do século XX. Tinha presente Os Meninos de Ouro de Agustina e deu consigo a pensar: quem é este José Matildes? E Farina, leitor de Swift, quem é esta figura de intelectual que andou por aí a dar o sopro da vida a um partido político? Não tinha a certeza de Farina ser uma representação do autor d’ A Torre da Barbela, tampouco Matildes o liberal que na Assembleia Nacional marcelista foi promessa de liberdades, homem providencial sem o ser, caudilho espúrio, malogrado líder caído sobre o casario de Camarate como um Ícaro de sombra. Sentia-se confuso, acometido de uma grande falta de vontade, as ideias fugindo-lhe da cabeça como pássaros de uma gaiola aberta. E procrastinava.
Nesta indecisão, resolveu não escrever o ensaio, mas o primeiro capítulo de um roman à clef: curava a ferida de cão com o pelo[2] do cão! Mas seria capaz de escrever os sucessivos capítulos de tal romance? Pelo que de si conhecia, a coisa ficaria talvez por uma novela, se calhar por um simples conto…
O conto é um género difícil, dissera-lhe uma vez um poeta. Precisa-se de muita concisão, muita agudeza de espírito para acertar no coração da narrativa. O poeta esforçava-se por o convencer, usava metáforas breves que lhe soavam a dísticos ou a haicai japoneses, mas ele não acreditava. Porque os grandes ficcionistas pouco ligam ao conto, escrevem as suas obras em centenas de páginas, a pluma rasando as resmas com as suas marcas de fogo, talvez apenas de tinta, não vale a pena tanto exagero: veja-se o Proust da Recherche, o Tolstoi da Guerra e Paz, o Durrel do Quarteto de Alexandria.
Faça-se deste poeta uma personagem à clef! Era um homem alto, os fatos de bom corte, a fala com um sotaque ilhéu que cheirava a mar e a búzios rumorejantes. Amava a poesia como se ama uma mulher desleal, dessas que dizem meias verdades e fazem versos aos amantes:

És o meu Sol que só se abre de vez em quando.
Vivo na penumbra dum sentimento
que não sei qual é.[3]

(Outra personagem à clef!)
A poesia é desleal, como toda a arte é desleal. Apetece pensar que foi Rimbaud que o disse, mas se calhar não foi. O que Rimbaud disse, ou escreveu, sim, parece que escreveu, em carta ao seu antigo professor Georges Izambard, foi je est un autre, frase gramaticalmente errada mas poeticamente certa, e que é talvez a melhor prova da deslealdade da arte. Da das mulheres nem vale a pena falar, só comparável à deslealdade dos homens!
Não escreveu o ensaio nem começou o romance. Sobreveio-lhe um grande desejo de dormir, de ver planícies de sonho e prados carregados de bruma. Quando deu por si estava do outro lado da vida, a cavalo numa dose exagerada de tranquilizantes.
O psiquiatra, que nunca lera Freud, estranhou a sua falta à sessão e ligou-lhe por mera rotina clínica. Ninguém atendeu. Que pena, logo agora que tinha decifrado mais uma personagem do roman à clef.



[1] “Romance com chave” – romance em que as personagens, tiradas do real, são apresentadas com outro nome, mas conservando os seus traços comportamentais e características físicas.
[2] Segundo as novas regras ortográficas, deixa de ter acento.
[3] Versos lidos num sonho.

terça-feira, março 01, 2011

UMA CARTA

Minha Querida Amiga,
Li a história reciclada do seu Celúlio Brito, verificando com satisfação que já escreve segundo as normas do novo acordo ortográfico. Não é fácil, pois são muitos anos a carregar com hífenes e a engolir consoantes mudas, adereços escriturais que têm tanta utilidade como um guarda-chuva num dia de sol. Agora que, finalmente, toda a escrita se recicla, o mais provável é que nos atrapalhemos, que dêmos um ou outro erro de ortografia, como lhe aconteceu com o diabo da consoante muda na palavra “objectiva”. Vá lá emendar, por favor.
Aproveito para dizer que fiquei satisfeito por vê-la escrever “história” e não “estória”. Embora a palavra já pertença ao léxico, podendo ser encontrada no Houaiss e noutros bons dicionários, apesar de não ficar mal de todo ao lado de “hei de”, de "hás de" e de “projeto”, a verdade é que não é do meu agrado – prefiro “história”.
Sobre o assunto da sua… história, saiba que de celulose não percebo nada. De papel, ainda menos: escrevo no computador e isso basta-me. A bilhetes e cartas não me dedico há muito, embora tenha várias histórias sobre cartas de amor, as únicas que considero no vasto domínio dos epistolários. Esta que agora lhe envio, veja-a por favor como a carta de amor que nunca lhe enviei (não se mandam cartas de amor a senhoras casadas, ainda por cima com idade para serem nossas filhas), porque o que há de mais amorável é entregarmo-nos aos prazeres da escrita – “prazeres minúsculos”, como aqueles que muito bem conhece.
Não sei o que possa acrescentar, tais as “emoções básicas” que a sua história despertou em mim… Laurinda? Achei piada ao nome, pelas razões que certamente adivinhará. Também gostei da tirada final, mas como vem em itálico fiquei sem saber se será da sua lavra ou se a tirou de algum livro selecto. Sabe, fez-me lembrar o Borges, director cego da Biblioteca de Buenos Aires… De facto, as bibliotecas não dão chatices; o chato é não aparecerem nelas os leitores! Mas isto não diz respeito à minha querida amiga, pois pelo que sei a sua casa é já uma biblioteca, isto é, um templo, a que nem sequer falta a deusa! Quando lá entrar, se algum dia lá entrar, descalço-me.
Com um grande beijo,