quarta-feira, janeiro 26, 2011

A CABRA PUXA SEMPRE PARA O MONTE

IRONIA ROMÂNTICA

Expressão composta por dois termos, à primeira vista, incompatíveis: ironia e romantismo. O romantismo é sempre associado à ideia de modernidade, de uma nova visão do autor que consegue ter alguma objectividade dentro da sua própria subjectividade. A ironia romântica nasce dentro dessa mudança literária do século XVIII, de um movimento que reformula a forma de produzir literatura e no próprio modo como o autor, enquanto criador, tende a uma maior capacidade de autocrítica e auto-análise dentro das obras que produz.

(Maria Filomena Morgado = e-dicionário de termos literários)

Continuo amancebado com a ironia. Leio o ensaio “A Ironia Romântica”, de Maria de Lourdes A. Ferraz, e a tese que vou construindo é que estamos perante um fenómeno diacrónico que não se confina ao Romantismo e perdura na nossa contemporaneidade de pós-modernismos e outras coisas que tais.
Leia-se o Garrett das “Viagens” e o Camilo de “A Queda dum Anjo”; leia-se depois Saramago e Mário de Carvalho. Mesmo num romance de Saramago como “A Caverna”, há ironia romântica! Que dizer então de “Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina”, de Mário de Carvalho?
Num trecho deste romance, o autor/narrador convoca a personagem Maria das Dores para uma conversa, criticando-lhe a linguagem desbragada e as infidelidades conjugais que comete. Tendo a personagem reagido mal, o autor/narrador ameaça suprimi-la da história, voltando a escrevê-la desde o princípio sem a sua participação. Maria das Dores não se intimida com a ameaça do seu demiurgo e responde-lhe à letra: –
A cabra puxa sempre para o monte. Mas eu agora não quero falar disso. Acho que era de bom gosto deixar-me a intimidade em paz. Cada um é um.
Já não me lembrava da resposta de Maria das Dores, mas hoje, ao relê-la, senti um grande enternecimento. Ironia romântica e da melhor! A Literatura dá-nos estas satisfações. Difícil é compreender quem possa passar sem ela.

COLÓQUIO SOPHIA


Vou a caminho.
Programa:

segunda-feira, janeiro 24, 2011

BAPTISTA-BASTOS NO DN - mais palavras para quê?

Mário Soares foi o vencedor das eleições. A astúcia e a imaginação do velho estadista permitiram que Fernando Nobre, metáfora de uma humanidade sem ressentimento, lhe servisse às maravilhas para ajustar contas. É a maior jogada política dos últimos tempos. Um pouco maquiavélica. Mas nasce da radical satisfação que Mário Soares tem de si mesmo, e de não gostar de levar desaforo para casa. Removeu Alegre para os fojos e fez com que Cavaco deixasse de ser tema sem se transformar em problema. O algarvio regressa a Belém empurrado pelos acasos da fortuna, pelos equívocos da época, pelo cansaço generalizado dos portugueses e pelos desentendimentos das esquerdas (tomando esta definição com todas as precauções recomendáveis). Vai, também, um pouco sacudido pelo que do seu carácter foi revelado. Cavaco não possui o estofo de um Presidente, nem um estilo que o dissimulasse. Foi o pior primeiro-ministro e o mais inepto Chefe do Estado da democracia. Baço, desajeitado, inculto sem cura, preconceituoso, assaltado por pequenas vinganças e latentes ódios, ele é o representante típico de um Portugal rançoso, supersticioso e ignorante, que tarda em deixar a indolência preguiçosa. Nada fez para ser o que tem sido. Já o escrevi, e repito: foi um incidente à espera de acontecer. Na galeria de presidentes com que, até agora, fomos presenteados, apenas encontro um seu equivalente: Américo Tomás. E, como este, perigoso. Pode praticar malfeitorias? Não duvido. Sobre ser portador daqueles adornos é uma criatura desprovida de convicções, de ideologia, de grandeza e de compaixão. Recupero o lamento de Herculano: "Isto dá vontade de morrer!"
(Baptista-Bastos, DN)

terça-feira, janeiro 18, 2011

OS TEXTOS ROÍDOS

Se a Literatura é – como disse Pedro Tamen – a única História possível do homem, ela é também uma história que se faz de intermináveis histórias, um permanente fazer e desfazer das tramas, como Penélope e o seu manto perante o assédio dos pretendentes.
Agora que se fala muito do Filme do Desassossego, venho de um jantar de amigos em que a autobiografia sem factos de Bernardo Soares – o Livro do Desassossego – foi servida como sobremesa. Entre outros, lemos o fragmento 452 da edição de Richard Zenith, que nos fala do aprendiz de escritório que coleccionava tudo o que pudesse encontrar sobre viagens.
Ia este jovem pelas agências de turismo, pedindo folhetos sobre viagens para Itália, para a Índia e outros lugares; tinha fotografias de barcos e navios, mapas de países e continentes; conhecia as ligações possíveis entre Portugal e a Austrália, entre Portugal e outros pontos do mundo. Diz o narrador que ele era o maior e o mais verdadeiro viajante, pois viajava com a alma e não com o corpo!
Também pelos meus catorze anos viajava desta forma. Como não podia visitar os Campos Elísios de Paris, as margens do Reno ou as ruínas imperiais de Roma, ia pelos balcões do Turismo Francês – na Rua do Ouro –, pela secção de turismo da Embaixada Alemã – que já não sei onde ficava –, e pelo Turismo de Itália (Ente Nazionale per il Turismo) – sediado no Marquês de Pombal –, e recolhia brochuras, mapas e informações sobre aqueles locais, viajando com a alma como o jovem aprendiz do escritório de Bernardo Soares. Uma vez, aí por 1962, fui mesmo à Embaixada de Cuba – que ficava, se não estou em erro, na Rua Pascoal de Melo – e vim de lá carregado de propaganda do novo regime de Fidel de Castro. Grande e revolucionário viajante era eu naquele tempo! Mas passemos adiante, não foram estes detalhes autobiográficos que aqui me trouxeram.
Do rapazinho do Livro do Desassossego fez Mário Cláudio o narrador da novela Boa Noite, Senhor Soares. Diz ele no capítulo V: Empenhava-me em ir recortando dos jornais velhos do patrão Vasques, e das revistas que ele assinava, as ilustrações que mais me atraíam, algumas delas representando os paquetes colossais, ou até mesmo os humildes cargueiros, e enchia com tudo isto, colado a goma arábica, cadernos e cadernos de almaço que guardava em caixas de cartão, e debaixo da cama.
Assim se entrecruzam os fios no manto de Penélope. É a Literatura como autofagia criadora – os textos roídos, como diz Machado de Assis no capítulo XVII de Dom Casmurro – , o desafio dos intertextos e o permanente recontar de histórias – esse canto de sereias que não se extingue e sempre desejamos ouvir. Era sobre isto que me interessava falar, não das minhas remotas experiências de viajar com a alma.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO E IRONIA

Detalhe de Flora na Primavera de Botticelli (c. 1478)
A ironia de género do romance autobiográfico é herdeira da ironia romântica, signo de modernidade cujos efeitos ainda vivemos. Andei hoje à volta do tema – ociosidade própria de quem não tem que picar o ponto e anda relativamente distraído do que vai acontecendo nos mercados financeiros e na campanha eleitoral do país pequenino.
Se me perguntam porque está aí essa imagem, bela como uma Primavera por acontecer, respondo que faz capa na edição francesa dum grande livro: L’ ironie de Vladimir Jankelevitch, com o qual andei amigado no dia que passou.
Em termos estilísticos fala-se muito da ironia pura – que a Retórica consagrou – , da ironia disfemística, da restritiva e da contornante. Meti os olhos em todas elas, mas sem a mesma emoção de quem olha uma mulher bonita num transporte público e espera não a ver descer na paragem seguinte.
Apesar do que já li sobre o assunto, ainda me falta compreender a ironia do amor. Agradeço ensinamentos ou indicação de bibliografia.

terça-feira, janeiro 11, 2011

EXCERTOS (5)

Talvez ele não fosse um sedutor, no sentido clássico do termo. Parecia viver um casamento descolorido, com um conjunto de problemas que o diário sumariamente refere, mas para Flora essa era a forma de sedução que mais lhe dizia, o apelo de partilhar com alguém um mesmo patamar de desencanto amoroso. A verdade é que nunca se deixara atrair pela vulgaridade dos galãs, nunca valorizara em demasia o aspecto físico dos homens nem a forma como se vestiam, indo mais pelos pequenos detalhes que revelam o ser e a alma: um sorriso tímido num cumprimento, a entoação especial duma palavra ou duma sílaba, o movimento das mãos enquanto falam.

segunda-feira, janeiro 10, 2011

GRANDE ENTREVISTA

Acabo de ver e ouvir a “Grande Entrevista” de Judite de Sousa na RTP 1. Surpreendeu-me o olhar ao mesmo tempo inteligente e incrédulo da jornalista – os olhos abismados sobre a figura parda do entrevistado – , perante as declarações do mais que certo ganhador das eleições presidenciais de 23 Janeiro. Segundo o próprio – o que parece causar-lhe algumas preocupações – , há seiscentos mil desempregados no nosso país, muitos deles, digo eu, beneficiando de subsídios de sobrevivência. No entanto, à data das suas aplicações financeiras na SLN/BPN, era, de acordo com a argumentação apresentada, um “mísero professor” que tinha de olhar pelas suas poupanças . Há uma falta de ética e proporção nas declarações deste senhor que se situam no campo da indignidade. Na Grécia, na Islândia ou na Irlanda nunca seria reeleito. Mas em Portugal, graças a Deus, tudo é possível.

NO DIVÃ

Duas enfermidades há aí, cujos sintomas não descobrem as pessoas inespertas: uma é o amor, a outra é a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa prática para discriminá-los. Passa o mesmo com a ténia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vítimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos aquilo que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até à espinhela caída.

Camilo Castelo Branco (1º Visconde de Correia Botelho) em “A Queda dum Anjo”


- Não há como o divã de Camilo para aliviar a depressão.

terça-feira, janeiro 04, 2011

"MAU TEMPO NO CANAL"

Aí está o canal – um braço de mar que separa a cidade da Horta, ilha do Faial, da ilha do Pico com o seu ápice de neve e o seu anel de nuvens. O mau tempo é metáfora – a Vitorino Nemésio não interessa a meteorologia, antes a vida sofrida do povo e a prosápia das famílias gradas, unidos, apesar de tudo, pela igual condição de ilhéus, permanentes candidatos à diáspora. João de Melo, outro escritor açoriano, fala-nos de gente feliz com lágrimas.
Neste romance, cujo tempo narrativo decorre entre 1917 e 1919, não há luta de classes nem consciência disso. Os grandes senhores amam os seus servidores e estes respeitam-nos como se não pudesse ser de outra forma. Veja-se o desvelo com que é assistido na doença, pelos seus patrões Margarida Dulmo e Roberto Clark, o criado Manuel Bana.
Por isto, e pelo rigor com que nele é traçado o perfil psicológico das personagens – nomeadamente o da protagonista Margarida Dulmo – podemos considerá-lo próximo da estética presencista, embora ele suplante em originalidade e fôlego tudo o que foi feito, em matéria de romance, pelos homens da revista presença.
Vitorino Nemésio, distante e crítico em relação a José Régio, ainda colaborou em dois números da folha de arte e crítica coimbrã. É curioso que em Mau Tempo no Canal utilize a expressão “jogo da cabra-cega” numa acepção idêntica à que lhe deu o poeta de Vila do Conde e Portalegre no seu livro com aquele título: “Na velhacaria do Ladeira entrava um conhecimento quase táctil das coisas, um jogo da cabra-cega feito pelo seguro da mão, curta e rente da rasa” (capítulo “A íris da aranha” de Mau Tempo no Canal).