segunda-feira, dezembro 13, 2010

EXCERTOS (4)

A primeira vez que falei com o marido de Flora foi numa manhã fria de Janeiro nas instalações do mesmo banco onde dois meses antes eu me encontrara acidentalmente com ela. O homem estava com dificuldades numa operação que tentava efectuar na caixa automática, procurando evitar a fila de espera que se formara para o balcão de atendimento. Ajudei-o, e foi então que me apresentei como tendo conhecido a sua falecida mulher. Olhou-me desconfiado, as sobrancelhas projectadas sobre as armações dos óculos, e eu tive a sensação de ter sido terrivelmente inepto na forma como lhe fizera aquela revelação.
Concluída a operação, olhou-me como quem procura perceber as minhas intenções – os lábios finos, de cujos cantos irradiavam umas lastimosas comissuras, nervosamente cerrados. Saí do banco com ele, acompanhando-o em conversa de ocasião ao longo da avenida que ia descendo a caminho da sua casa.
Lembro-me de que estávamos no período duma campanha eleitoral qualquer. Passava pela avenida um carro com instalação sonora que debitava decibéis de confiança na nação e nos candidatos a seus representantes. À medida que fomos caminhando, percebia que o homem se descontraía, avançando num diálogo que apesar de tímido me parecia isento de qualquer reserva. Assim, quando passámos à porta do café foi de comum acordo que entrámos e nos sentámos numa mesa.
Disse-me que vivia sozinho há dois anos e meio, desde que tomara a iniciativa de sair de casa. Primeiro, durante alguns meses, fora viver para uma casa de porteira dum prédio vizinho, um desses minúsculos apartamentos que existem no último piso dos edifícios, uma espécie de mansardas viradas para o declive dos telhados; depois para um apartamento desafogado que foi mobilando a seu gosto. Foi breve a nossa conversa dessa manhã, mas voltámo-nos a encontrar uns dias mais tarde, e aí já longamente falámos de diversos assuntos e também da nossa situação comum que era a de ambos nos encontrarmos a viver sozinhos, eu separado da minha mulher, ele numa espécie de viuvez .
Omiti o facto de ter em meu poder o diário de Flora. Eu não podia informá-lo da sua existência sem perceber com que tipo de pessoa estava a lidar, que constituição psicológica era a sua, se aguentaria as revelações nele contidas. Tinha-o visto muito choroso, completamente de rastos, no funeral da ex-mulher. Não queria causar-lhe maior dor, embora me custasse guardar um escrito que não me pertencia e do qual, até pela sua forma de enunciação, ele era o único destinatário.

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