quinta-feira, dezembro 02, 2010

EXCERTOS (3)

Estava-se em 1975, corriam no ar os frescos eflúvios da liberdade. Flora seguia essa onda em que se descobria mais verdadeira e mais mulher. Vibrava com os lances revolucionários que se jogavam nas ruas em manifestações e comícios, acreditando que a vida e o amor eram coisas belas, tão belas como um voo de gaivota ou um dia de chuva com arco-íris. Como podia amarrar-se a um casamento com alguém que já não amava? Consumada a ruptura, foi com o seu novo amor que participou pela primeira vez na manifestação do 1º de Maio, em 1976, e a partir daí não mais deixou de descer à rua no dia da festa dos trabalhadores.
Do então namorado e futuro marido (passaram a viver juntos a partir de Fevereiro de 1977), há referências no diário aos estudos que ambos faziam em cursos nocturnos: ele na universidade, ela na escola secundária onde tirava o décimo segundo ano.
Antes de terem arranjado casa, encontravam-se ao final da tarde no apartamento dum amigo que se ausentara para França, num terceiro andar de um vetusto prédio do Alto de Santa Catarina. Naquela altura ainda estava por escrever “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e a história dos amores dum poeta com uma criada de hotel – amores também daqueles lugares, com o Adamastor ao lado e o Tejo ao fundo. De amor eram os encontros de Flora com o namorado – aparecem agora em livro, está visto que já não há nada de novo para contar.
Ela achava-o um homem sensual, e era delicada e terna quando iam para a cama. Porém, por volta de 1980, num dos seus primeiros momentos de desencanto, o coração já falava outra língua. Página vinte e dois do diário:

Não foi paixão. Não passou tudo de uma grande admiração que me tomou, uma errada percepção de sentimentos, um turbilhão de ideias desordenadas. Pensava ser amor, mas afinal era apenas deslumbramento. Porque estava fragilizada, cegou-me a tua luz, mas agora que habituei os olhos a esse fulgor já sou capaz de compreender a verdadeira expressão do que sinto.

Como o náufrago que vê passar uma tábua à tona de água, Flora tê-la-á agarrado à espera de ver chegar o barco salva-vidas. Nenhum náufrago, se tiver sorte, fica pela tábua de salvação. Ela é um meio, e não um fim. A enganadora paixão de Flora foi um meio de se libertar de um grande mal que lhe oprimia o coração.

1 comentário:

João António disse...

Nenhum prisioneiro fica livre enquanto não libertar o seu carcereiro (Nelson Mandela). Somos prisioneiros uns dos outros, ou a verdadeira arte de amar é a da libertação. Transformar esta ideia em princípio de vida, eis algo sedutor.