domingo, novembro 28, 2010

EXCERTOS (2)

Na noite que se seguiu ao funeral de Flora, sonhei com ela. Vi-a, como sempre, com as suas calças de ganga e o seu casaco de fazenda aos quadrados em tons de cinzento. Só que no desassossego do sonho, já não era Flora que eu via, mas M., sorrindo com os seus dentes muito brancos, usando o colar e os brincos que eu lhe trouxera de São Paulo quando ali participei num congresso de literatura autobiográfica.
Li uma vez, já não sei em que livro, que só quando vemos os mortos é que começamos a perdoar os vivos. Eu acordei sobressaltado, mas passado aquele momento crítico em que viajei do sonho para a realidade, parecia que começava a perdoar, a compreender a fuga apocalíptica de M. e a aceitá-la como se tivesse sido a mais acertada decisão da sua vida.
Não sei até que ponto este meu novo estado de espírito resultava da leitura do diário de Flora. Por mais de uma vez, lendo sofregamente aquelas páginas, parecera-me que eram pedaços de mim que ali se encontravam expostos. Talvez me possuísse o desejo mórbido de querer descobrir nos dramas dos outros os contornos do meu próprio drama. Ou então tudo não passava de uma necessidade de me encontrar, uma tentativa desesperada de compreender a vida, buscando no buraco do meu fracasso as explicações para o erro e a frustração.

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