quinta-feira, outubro 21, 2010

A CABEÇA DA GÁRGULA


No romance “A Noite do Oráculo”, de Paul Auster, há um episódio em que a cabeça duma gárgula de pedra se desprende da fachada de um prédio de apartamentos, passando a poucos centímetros do crânio de Nick Bowen, uma personagem da narrativa que atravessa certas dificuldades no seu relacionamento conjugal.
A pedra que só por acaso não o matou, deu a Nick Bowen o ensejo de rapidamente reflectir sobre a vida e os seus imponderáveis. Devia estar morto, mas escapou ileso, pelo que a situação se lhe afigurou como uma segunda oportunidade de vida que lhe era concedida. Então, em rotura com o passado, resolveu não voltar a casa, tomando um avião para Kansas City, o primeiro que saía do aeroporto de La Guardia naquela noite em que ali chegou. Ia viver a sua segunda vida num lugar que lhe era inteiramente desconhecido, com pessoas que nunca tinha visto, partindo do zero ou de pouco mais. A dificuldade por que acabara de passar dera-lhe um suplemento de coragem para uma nova existência.
Assim, a cabeça da gárgula de pedra é uma boa metáfora para certos momentos das nossas vidas. Todos temos um tempo em que somos surpreendidos pela provação: uma doença grave, a morte de um filho ou de uma pessoa muito querida, ou essas outras formas de morte que são o afastamento e a separação. Felizmente que a cabeça da gárgula nem sempre nos despedaça o crânio. Ainda incrédulos e assustados, olhamos em volta como se não víssemos nada, sacudimos o pó das roupas, contemplamos os estilhaços de pedra no chão e acreditamos ainda mais nas nossas forças. É então que tomamos o avião para a nossa Kansas City, sabendo que nenhuma viagem é mais importante que aquelas que fazemos dentro de nós.

domingo, outubro 17, 2010

OS CADERNOS PORTUGUESES

Paul Auster (Newark, 1947)
Eu sabia que acabaria por comprar um caderno português: bastaria pegar num deles, bastaria senti-lo nas minhas mãos e eu não resistiria. Não havia neles nada de luxuoso, nada que desse nas vistas. Não, aqueles cadernos eram muito simplesmente um artigo prático – resistente, despretensioso, útil, de maneira nenhuma o livro em branco que poderíamos escolher como prenda para um amigo.

(Paul Auster em “A Noite do Oráculo”)


Procurem-se os ditos cadernos numa pequena papelaria do Largo do Calhariz, em Lisboa, ao lado do elevador da Bica. À semelhança do que aconteceu com Sidney Orr, narrador e protagonista do romance de Paul Auster, eles poderão propiciar encontros felizes com a escrita.

domingo, outubro 10, 2010

ACADEMIA SUECA - A MADRASTA


A ideia do título surgiu-me por ter lido, durante as férias, o “Elogio da Madrasta” de Mario Vargas Llosa. Embora neste livro se fale de uma madrasta benigna, mãe e amante dum enteado afinal bastante perverso, há literaturas para as quais a Academia Sueca tem sido uma madrasta das autênticas.
Tome-se como exemplo as literaturas de língua portuguesa, contempladas com o único prémio de José Saramago em 1998. Mário Vargas Llosa, peruano, é o sexto Nobel de língua castelhana depois de cinco escritores espanhóis, alguns praticamente desconhecidos do grande público: José Echegaray (1904), Jacinto Benavente (1922), Juan Ramon Jiménez (1956), Vicente Aleixandre (1977) e Camilo José Cela (1989). Nos trinta e três anos que vão de 1956 a 1989, a Espanha teve três laureados com o Prémio Nobel da Literatura, o que me leva a pensar que Portugal e o Brasil mereciam ter pelo menos mais um ou dois escritores entre os premiados da Academia Sueca.
Já cerca de 1960, conforme leio no diário de José Régio, se agitava o nosso meio literário face às personalidades portuguesas indicadas para o prémio Nobel. Miguel Torga fora proposto pelo professor e historiador francês Jean-Baptiste Aquaronte, e os nomes de Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro eram igualmente falados nos jornais como nobelizáveis. De Régio, porém, nem sequer se lembravam, conforme nos revela o próprio em magoada nota naquele seu diário.
Hoje, doze anos depois de Saramago, ocorre-me o nome de Agustina Bessa-Luís para preencher um dos lugares do Nobel que temos em falta. A sua escrita é poderosa e paradoxal, de difícil assimilação, embora nunca deixe de nos surpreeender e estimular. Mas que pensará Agustina do prémio da Academia Sueca? Proust, James Joyce e Jorge Luis Borges nunca o receberam e não deixaram por isso de figurar entre os maiores. Sartre foi nomeado em 1964 e recusou. Prémios são prémios, fazem parte de um certo mundanismo que se estabeleceu na instituição literária e que nem sempre se afirma pelas melhores razões. Porém, além das inerentes vantagens materiais, eles constituem um reconhecimento de facto e fazem luz sobre escritores e literaturas que apesar das suas valias não lograram chegar até ao grande público. Por isso sou por Agustina para Nobel da Literatura, embora receie poder ser já demasiado tarde para se lhe fazer essa justiça.

terça-feira, outubro 05, 2010