domingo, abril 25, 2010

23 de Abril, comemoração do Dia Mundial do Livro - O CONTADOR DE HISTÓRIAS


HISTÓRIA TRISTE DA MULHER-A-DIAS QUE GOSTAVA DE LER POESIA


Antes de ter começado a trabalhar como mulher-a-dias, tinha sido operária numa fábrica de calçado, o salário certo ao fim do mês, refeições subsidiadas pela empresa, creche para as crianças e assistência médica gratuita, tudo regalias concedidas de livre vontade pela entidade empregadora ou decorrentes do contrato colectivo de trabalho em vigor.
Foi um bom emprego até ao dia em que uns operários da Malásia ou do Paquistão, não se sabe ao certo, se dispuseram a fazer o mesmo serviço por uma pequena parte do que por cá se pagava, prescindindo do refeitório, da creche e da assistência médica gratuita, luxos que não eram precisos lá por aquelas bandas onde a gente era saudável e de pouco alimento, e os miúdos, filhos dos operários, tinham sido habituados a andar pelas ruas, entregues a si mesmos, sem necessitarem de mais cuidados que aqueles que na natureza são dispensados pelos progenitores a qualquer cria animal.
Como tinha a renda de casa para pagar, o frigorífico para abastecer, as crianças para vestir e calçar, teve que procurar trabalho. Começou por lavar escadas, arranjou umas senhoras para quem passava a ferro e fazia arranjos de costura, foi companhia de uma idosa que convalescia de um acidente vascular cerebral, até que conseguiu um serviço de quatro horas diárias em casa dum senhor que era professor universitário e tinha uma biblioteca de muitas centenas de livros. Só a limpar o pó dos volumes, a arrumá-los meticulosamente nas estantes ou a retirá-los para cima da secretária do professor, levava ela uma parte considerável do seu horário de trabalho.
Este senhor, seu patrão, era homem de poucas falas: dizia bom dia ou boa tarde, faça isto ou faça aquilo, e mais além não ia nas suas práticas, embora se soubesse que era pessoa com dotes de conversação, de grandes e circunstanciados discursos em tudo quanto a matéria professoral dissesse respeito.
Pelo total de vinte horas semanais que fazia como mulher-a-dias em casa do professor de literatura – é a altura de dizer, para que se saiba, a área do conhecimento em que ele exercia a sua cátedra –, recebia mensalmente um valor próximo do salário mínimo nacional, um rendimento apesar de tudo satisfatório, tendo em conta as suas fracas qualificações profissionais e o facto de trabalhar apenas a metade das horas de qualquer assalariado normal. Assim, ainda lhe sobrava tempo para acompanhar os filhos e deitar a mão a um ou outro serviço que fosse aparecendo.
O senhor professor passava muito tempo ao computador a lançar uns apontamentos que, pelo que percebera duma conversa telefónica, eram destinados a um pós-doutoramento ou a qualquer coisa parecida começada em “pós” e acabada em “ento”. Como poderia ela saber exactamente do que se tratava se só conhecia as palavras simples de todos os dias, pouco entendendo das conversas que lhe ouvia ao telefone com os colegas e amigos? Uma coisa sabia, porém, era que aquilo que o professor escrevia ao computador era um estudo sobre versos e gente que fazia versos, poetas, como aquele seu antigo colega que compunha quadras para adornar os cravos de papel de S. João e um dia até lhe fizera uma que lhe parecera muito bonita mas de cujos versos há muito tempo se havia esquecido.
Soube que os apontamentos eram sobre versos e gente que fazia versos porque um dia, quando limpava o pó ao ecrã do computador, num breve momento em que o professor fizera uma interrupção para tomar café, pôde ler na página aberta a seguinte quadra:

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?

E outras se lhe seguiam, embora não as tenha conseguido fixar, lendo depois as considerações que o professor fazia sobre o autor, um tal Almeida Garrett, poeta que pelo nome até parecia estrangeiro, embora, coisa admirável!, estivessem os versos escritos em português e, tanto quanto lhe era dado entender, do melhor que já tinha lido, que era afinal muito pouco ou quase nada.
Ficou tão impressionada com aquela leitura que no sábado seguinte, estando de folga, se dirigiu à biblioteca municipal para ler os poemas do tal Almeida Garrett. Deu com o livro onde se encontrava o poema da barca bela, tinha um título bonito, “Folhas Caídas”, embora lhe fizesse lembrar o Outono e os momentos tristes da vida, como aquele em que o marido saiu de casa, deixando-a sozinha com o encargo dos filhos. Então leu com atenção o poema. A segunda quadra era igualmente bela:

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

E continuou, não conseguindo deixar de ler e reler todo o poema. Perdeu a noção de quantas vezes passou os olhos pela luz daqueles versos. Os olhos e a alma, que era dentro dela que sentia aquela formidável força que se soltava de cada sílaba, uma música colorida que lhe trazia uma inexplicável sensação de alegria e sofrimento:

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela…
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador!

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador!

E perante a revelação que ali se lhe oferecia, nunca mais foi capaz de deixar de ler os poetas.
A história, diga-se desde já, tem um final infeliz. Em casa do professor, a mulher-a-dias começou a descurar grosseiramente os seus deveres laborais. Sempre que o patrão não estava em casa, esquecia-se do trabalho e passava grande parte do tempo a ler poemas, dizendo-os por vezes em voz alta, desejosa de sentir o ouro e a química do verbo, de ouvir os ritmos, não lhe bastando já o silêncio anódino da leitura mental. A poesia tornou-se para ela um vício que não conseguia dominar, e por mais de uma vez se lembrou duma sua conhecida que fora despedida duma casa onde trabalhava porque na ausência dos patrões ia desbastando as bebidas da garrafeira até não ser capaz de se aguentar de pé. Também a poesia era agora para ela uma espécie de álcool forte e irrecusável.
O pior sucedeu quando certa manhã, regressando o professor mais cedo a casa, deu com o trabalho todo atrasado e a mulher-a-dias sentada na sua secretária a folhear os livros de poesia do seu estudo em preparação. Foi despedida, e aí está a injustiça cometida por aquele insensível professor.
Sim, injustiça e das maiores, porque tratando-se de um professor de literatura, era seu dever estimular, e não reprimir, o sonho poético da sua servidora. Coisas que sucedem quando o apego à poesia e às obras dos poetas é fruto da vaidade académica, do gozo de se saber admirado pelos artigos publicados em revistas da especialidade e de sentir o deslumbramento de colegas e alunos perante o fulgor do seu magistério. Para a mulher-a-dias a poesia era um deleite inútil, feito de satisfação interior, sem cálculo ou premeditação, por isso autêntico e puro como o musgo das pedras ou o vento que se mete pelas copas das árvores.
Tudo, ou quase tudo, foi tirado a esta mulher: o emprego, o amor, a felicidade duma família unida e equilibrada. Só não conseguiram tirar-lhe a capacidade de sonhar.
Uns tempos mais tarde, estando o professor de literatura a folhear um dos seus livros, viu sublinhados por traço alheio, num poema de Natália Correia, os seguintes versos:

Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.

Quedou-se pensativo por uns longos instantes, mas era tarde de mais para emendar o erro.