sábado, dezembro 25, 2010

domingo, dezembro 19, 2010

DEVERES

(Clicar na imagem para aumentar)
Ontem, navegando no ciberespaço, entrei numa página do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior em que se me deparou esta informação. Estamos completamente expostos – é difícil que alguém interessado não consiga sempre descobrir alguma coisa daquilo que andamos a fazer.
De qualquer maneira, foi bom, para me lembrar dos deveres. Garanto que não deixarei de entregar em 2011 o número de páginas que Bolonha reclama. Sessenta estão escritas e aprovadas. Já não falta tudo.

segunda-feira, dezembro 13, 2010

EXCERTOS (4)

A primeira vez que falei com o marido de Flora foi numa manhã fria de Janeiro nas instalações do mesmo banco onde dois meses antes eu me encontrara acidentalmente com ela. O homem estava com dificuldades numa operação que tentava efectuar na caixa automática, procurando evitar a fila de espera que se formara para o balcão de atendimento. Ajudei-o, e foi então que me apresentei como tendo conhecido a sua falecida mulher. Olhou-me desconfiado, as sobrancelhas projectadas sobre as armações dos óculos, e eu tive a sensação de ter sido terrivelmente inepto na forma como lhe fizera aquela revelação.
Concluída a operação, olhou-me como quem procura perceber as minhas intenções – os lábios finos, de cujos cantos irradiavam umas lastimosas comissuras, nervosamente cerrados. Saí do banco com ele, acompanhando-o em conversa de ocasião ao longo da avenida que ia descendo a caminho da sua casa.
Lembro-me de que estávamos no período duma campanha eleitoral qualquer. Passava pela avenida um carro com instalação sonora que debitava decibéis de confiança na nação e nos candidatos a seus representantes. À medida que fomos caminhando, percebia que o homem se descontraía, avançando num diálogo que apesar de tímido me parecia isento de qualquer reserva. Assim, quando passámos à porta do café foi de comum acordo que entrámos e nos sentámos numa mesa.
Disse-me que vivia sozinho há dois anos e meio, desde que tomara a iniciativa de sair de casa. Primeiro, durante alguns meses, fora viver para uma casa de porteira dum prédio vizinho, um desses minúsculos apartamentos que existem no último piso dos edifícios, uma espécie de mansardas viradas para o declive dos telhados; depois para um apartamento desafogado que foi mobilando a seu gosto. Foi breve a nossa conversa dessa manhã, mas voltámo-nos a encontrar uns dias mais tarde, e aí já longamente falámos de diversos assuntos e também da nossa situação comum que era a de ambos nos encontrarmos a viver sozinhos, eu separado da minha mulher, ele numa espécie de viuvez .
Omiti o facto de ter em meu poder o diário de Flora. Eu não podia informá-lo da sua existência sem perceber com que tipo de pessoa estava a lidar, que constituição psicológica era a sua, se aguentaria as revelações nele contidas. Tinha-o visto muito choroso, completamente de rastos, no funeral da ex-mulher. Não queria causar-lhe maior dor, embora me custasse guardar um escrito que não me pertencia e do qual, até pela sua forma de enunciação, ele era o único destinatário.

domingo, dezembro 05, 2010

RAUL BRANDÃO E O GABIRU

Raul Brandão com a esposa, D. Maria Angelina - retrato de Columbano

Este homem tinha mulher, uma casa no campo, fazia a vindima e vendia o seu vinho como qualquer proprietário rural. Na correspondência com Teixeira de Pascoaes – que também era produtor –, há avisos sobre este negócio incerto, sempre sujeito às oscilações do mercado e às suas obscuras regras: Olhe que o vinho, com grande admiração minha – e porque neste país nunca há lógica – está a subir! Eu fiz a asneira de vender o meu por 600,000 réis – mas o meu caseiro já o vendeu por 720,000 e vizinhos por 900,000!!! É uma febre. Porquê não percebo! Acautele-se.
Em “Húmus”, porém, não é o vitivinicultor que fala, mas o homem esmagado pelo mistério da vida e da morte, pela presença ou pela ausência de Deus, pelo sentido último das coisas. Não há na literatura portuguesa outro livro como este – um misto de novela, diário e reflexão filosófica, um painel de inquietantes personagens de onde se destaca o Gabiru.
O Gabiru não é como as velhas D. Penarícia, D. Leocádia ou D. Biblioteca que moem vidas mesquinhas timbradas de invejas e aleivosias. O Gabiru mistura, resolve, extrai sonho do sonho. Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes: o Gabiru não ouve, não vê, não sente.
“Húmus” é o livro de um eu dividido e a consciência disso. O Gabiru é a descoberta do outro, o estilhaçamento de um ser – como na heteronímia pessoana ou no eu múltiplo de Régio.
Todos somos legião, todos estamos cheios de Gabirus capazes do melhor e do pior. A dificuldade, às vezes, é descobri-lo.

quinta-feira, dezembro 02, 2010

EXCERTOS (3)

Estava-se em 1975, corriam no ar os frescos eflúvios da liberdade. Flora seguia essa onda em que se descobria mais verdadeira e mais mulher. Vibrava com os lances revolucionários que se jogavam nas ruas em manifestações e comícios, acreditando que a vida e o amor eram coisas belas, tão belas como um voo de gaivota ou um dia de chuva com arco-íris. Como podia amarrar-se a um casamento com alguém que já não amava? Consumada a ruptura, foi com o seu novo amor que participou pela primeira vez na manifestação do 1º de Maio, em 1976, e a partir daí não mais deixou de descer à rua no dia da festa dos trabalhadores.
Do então namorado e futuro marido (passaram a viver juntos a partir de Fevereiro de 1977), há referências no diário aos estudos que ambos faziam em cursos nocturnos: ele na universidade, ela na escola secundária onde tirava o décimo segundo ano.
Antes de terem arranjado casa, encontravam-se ao final da tarde no apartamento dum amigo que se ausentara para França, num terceiro andar de um vetusto prédio do Alto de Santa Catarina. Naquela altura ainda estava por escrever “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e a história dos amores dum poeta com uma criada de hotel – amores também daqueles lugares, com o Adamastor ao lado e o Tejo ao fundo. De amor eram os encontros de Flora com o namorado – aparecem agora em livro, está visto que já não há nada de novo para contar.
Ela achava-o um homem sensual, e era delicada e terna quando iam para a cama. Porém, por volta de 1980, num dos seus primeiros momentos de desencanto, o coração já falava outra língua. Página vinte e dois do diário:

Não foi paixão. Não passou tudo de uma grande admiração que me tomou, uma errada percepção de sentimentos, um turbilhão de ideias desordenadas. Pensava ser amor, mas afinal era apenas deslumbramento. Porque estava fragilizada, cegou-me a tua luz, mas agora que habituei os olhos a esse fulgor já sou capaz de compreender a verdadeira expressão do que sinto.

Como o náufrago que vê passar uma tábua à tona de água, Flora tê-la-á agarrado à espera de ver chegar o barco salva-vidas. Nenhum náufrago, se tiver sorte, fica pela tábua de salvação. Ela é um meio, e não um fim. A enganadora paixão de Flora foi um meio de se libertar de um grande mal que lhe oprimia o coração.

segunda-feira, novembro 29, 2010

"O BOM INVERNO" de JOÃO TORDO

Sábado, 27 de Novembro: - Apresentação do romance "O Bom Inverno", de João Tordo, na Biblioteca Municipal de S. Domingos de Rana (Cascais).

domingo, novembro 28, 2010

EXCERTOS (2)

Na noite que se seguiu ao funeral de Flora, sonhei com ela. Vi-a, como sempre, com as suas calças de ganga e o seu casaco de fazenda aos quadrados em tons de cinzento. Só que no desassossego do sonho, já não era Flora que eu via, mas M., sorrindo com os seus dentes muito brancos, usando o colar e os brincos que eu lhe trouxera de São Paulo quando ali participei num congresso de literatura autobiográfica.
Li uma vez, já não sei em que livro, que só quando vemos os mortos é que começamos a perdoar os vivos. Eu acordei sobressaltado, mas passado aquele momento crítico em que viajei do sonho para a realidade, parecia que começava a perdoar, a compreender a fuga apocalíptica de M. e a aceitá-la como se tivesse sido a mais acertada decisão da sua vida.
Não sei até que ponto este meu novo estado de espírito resultava da leitura do diário de Flora. Por mais de uma vez, lendo sofregamente aquelas páginas, parecera-me que eram pedaços de mim que ali se encontravam expostos. Talvez me possuísse o desejo mórbido de querer descobrir nos dramas dos outros os contornos do meu próprio drama. Ou então tudo não passava de uma necessidade de me encontrar, uma tentativa desesperada de compreender a vida, buscando no buraco do meu fracasso as explicações para o erro e a frustração.

sexta-feira, novembro 26, 2010

EXCERTOS (1)

Com as incidências recentes, a progressão da minha tese limitava-se a cumprir, como numa greve, os serviços mínimos. Lia o diário do poeta pela enésima vez, mais para me confortar do que para dele extrair elementos para o meu trabalho. Deparava-me com a solidão em que tinha vivido um grande espírito, e fortalecia em mim a ideia de que a felicidade era inimiga do estudo e da criação artística. Como de certa forma me sentia doente, segui o conselho de Blaise Pascal: faire le bon usage des maladies. Foi assim que comecei a escrever esta narrativa, não propriamente em jeito de catarse, mas para tirar o melhor partido do mau momento que atravessava, pensando atirá-la, uma vez publicada, à cara incrédula e quiçá arrependida de M.
Impus-me a obrigação de escrever, no mínimo, uma página por dia, entre seiscentas e setecentas palavras. Um objectivo modesto, sabendo como sei que há escritores que vão às duas mil e mais palavras em cada jornada de trabalho. De qualquer forma, eu não me considerava um escritor, era alguém que estava simplesmente a escrever, além de que tinha de reservar algum tempo para prosseguir com a minha tese de doutoramento. Como entretanto me tinha reformado, deixei os pequenos trabalhos que mantinha como formador e passei a dedicar-me inteiramente aos livros e à escrita. Pela primeira vez na vida, abraçava o ócio e punha de lado o negócio.

terça-feira, novembro 23, 2010

LA ROCHELLE

Recebi notícias de La Rochelle, cidade aonde espero voltar em breve, em especial à Île de Ré, se o tempo for de Verão e os dias estiverem desanuviados.
Vendo esta imagem, veio-me à lembrança velhas leituras sobre o dramático cerco da cidade nos anos de 1627 e 1628 – as memórias do Cardeal Richelieu e o episódio muito ficcionado de Alexandre Dumas em “Os Três Mosqueteiros”. Há gente assim, que não se cansa de escavar no fundo dos tempos, como se vestisse uma gabardina para sair para a chuva.

quinta-feira, novembro 18, 2010

UM LUGAR

Muitas vezes o tenho imaginado assim, um lugar trespassado de névoa e povoado de árvores nuas de ilusória materialidade. Do que não conhecemos só podemos formar ideias espúrias, pelo inevitável desajustamento entre o que possa ser ou não ser e o nosso intrínseco desejo de imaginar o inimaginável.
É triste permitirmo-nos perder alguém. É triste ver alguém partir na idade de ouro.

terça-feira, novembro 16, 2010

O PRIMEIRO DIA

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

Da canção de Sérgio Godinho

domingo, novembro 14, 2010

LEITURAS DE DOMINGO


Fora das amarras de um casamento, ou da sinistra ilusão do amor, poderíamos estar juntos como companheiros de vida. Não existia momento que mais prazer me desse do que encontrarmo-nos depois do trabalho dela no jornal e bebermos uma cerveja num lugar qualquer da baixa da cidade, discutindo as trivialidades do dia-a-dia, trocando carícias e descobrindo, todos os dias, coisas novas no outro, como dois animais que se vão farejando e rodeando até se amarem.
JOÃO TORDO, Hotel Memória, QuidNovi, 2ª edição, Junho de 2008, p. 118.

domingo, novembro 07, 2010

MAGIA DE AFASTAMENTO

Não procures nem creias: tudo é oculto.
(Verso do poema “Natal” de Fernando Pessoa)


Numa noite do passado mês de Agosto estive numa vivenda de Sintra onde se realizam sessões de espiritismo. A vivenda é propriedade duma senhora inglesa que se dedica a estes jogos do oculto, sendo frequentada por médiuns, magos e outros agentes do sobrenatural. Por mim, nunca me apanhariam em tal carrossel, tendo aceitado ir apenas por insistência da minha professora S., investigadora da vertente esotérica da obra de Fernando Pessoa, que ali comparecia em demanda de subsídios para o seu trabalho de pós-doutoramento.
Pelo que nos foi dito, esperava-se naquela noite chegar à fala com o espírito de Henry More, filósofo inglês do século dezassete com quem o autor de “Mensagem” se correspondeu em certo período da vida, embora não estivesse posta de parte a hipótese de o espírito múltiplo de Pessoa, ele mesmo, poder também ser chamado ao diálogo mediúnico. A minha professora não acreditava cegamente nestes intercâmbios com o além, mas animava-a uma curiosidade intelectual, desejosa de ver até onde as coisas poderiam ir.
Chegámos à dita vivenda pelas onze horas da noite, depois de nos termos confortado com queijadas e chá num conhecido estabelecimento local que tem o nome dum pássaro. O ambiente estava carregado dos mais esquisitos cheiros, sentia-se um hálito do além, enjoativo e mágico. Um interlocutor astral praticava escrita automática, enchendo cadernos de papel quadriculado de copiosas frases garatujadas. Confesso que me intimidei com o aparato dos móveis, com a penumbra que descia pelas paredes cinzentas, com a palidez de certos rostos que vagueavam na casa.
Pouco mais vi para além do que acabo de relatar, tendo ficado grande parte do tempo numa pequena sala pesadamente mobilada, aguardando sentado o fim da sessão mediúnica a que a minha professora assistia.
Foi então que se abeirou de mim um jovem de calças de ganga e camisa às florinhas verdes e amarelas que se apresentou como mago, seguidor das ideias de Aleister Crowley. Sempre imaginara os magos com um trajo formal, mas, pelos vistos, até nesta classe se têm registado grandes alterações na maneira de vestir… Sentou-se ao meu lado e disse-me: “Dá-me os teus braços”. Embora estranhando o pedido, estendi-os na sua direcção. Ele segurou-os com os dedos na região dos pulsos, como se aferisse o ritmo cardíaco, fechando os olhos e sibilando impercebíveis vocábulos. E perguntou, ao fim de algum tempo, embora eu sentisse que não esperava qualquer resposta da minha parte: “Como está a tua vida conjugal?”. Fiquei calado. Então acrescentou: “Há uma mulher do Norte, amiga da metade de ti, que te traz sob o efeito de uma magia de afastamento”. Não sei se me deixei rir ou se me pus ainda mais sério. O mago, imperturbável, concluiu: “Interesses obscuros, inconfessados desígnios”. Posto o que girou para outra sala, deixando-me entregue ao seu enigmático oráculo.
A noite acabou sem mais sobressaltos. A minha professora saiu da sessão de espiritismo de faces afogueadas, vindo-me à ideia a pobre ceifeira do poema de Pessoa. Eu sempre imaginei as ceifeiras de faces afogueadas, ceifando à calma, embora a do poema se limite a cantar, na sua alegre e anónima viuvez, nada dizendo o poeta sobre as suas faces. Deixámos a vivenda silenciosos, sem comentarmos as incidências da noite. Levei-a a casa, onde, segundo me disse, o marido a esperava com ansiedade.
Hoje telefonei-lhe a contar umas certas coisas que me aconteceram, justificando-me do atraso do meu trabalho, um capítulo da tese que prometera entregar-lhe e que ainda não ultrapassara a dimensão de umas escassas páginas. Falei-lhe pela primeira vez da magia de afastamento descoberta pelo mago, a qual afinal dera resultado, e da mulher do Norte que eu identificava com alguém que conhecia como frequentadora de bruxas e videntes, leitora de livros herméticos e de outras inquietantes prosas. Então contou-me a minha professora que, naquela noite, também o mago lhe vaticinara um preocupante sucesso que tinha acabado de concretizar-se. Suspirou, e disse-me: “Sabes, Manuel, nós não acreditamos em bruxas, mas lá que as há, há”.

quarta-feira, novembro 03, 2010

A FORMOSA LUSITÂNIA - TOMAR


Do blogue http://www.camilo20.wordpress.com/ de Luísa Alvim.
=
Chegamos a Píalvo (Paialvo) estação da interessantissima cidadesinha de Thomar. Os arrabaldes são bonitos, com graciosas estradas enverdecidas, e toda a campina em redor ás ondulações graciosas. O arvoredo é magnifico. Como os olhos se refrigeram n’aquellas copas de folhagens!
A terra faz muita differença do que é lá para Santarem. Aqui não ha aquelle faiscar cauzado pelas scintillações do saibro branco tão incommodas para a vista. Feracissima vegetação, flores e fructos por toda a parte em abundância. Desejava que visse os esplendidos cachos de uvas que comprei n’esta estação, a uma rapariga rozada, de ollios ardentes e chapéu desabado e empennachado demurtha e cravos.
O cacho estava mais perto de pesar dous arráteis que um. Os bagos todos perfeitos e grandes, verdes e levemente tintos de azul. «Quanto é?» perguntei eu quando ella m’o chegou a portinhola da carruagem, «é uma pataca, minha senhora». Uma pataca é quarenta reis. Eu poderia obte-lo por trinta, se regateasse, mas apenas encolhi os hombros, a la portugaise, e respondi: «Caro, muito caro». Ao que ella redarguiu com razão: « Porém, é tão boa». Estufa nenhuma ainda produziu mais perfeita pintura, nem mais delicioso sabor.
Tencionara eu, n’esta direcção, estender a minha viagem a Thomar, que contém diversos edifícios antigos, e outras relíquias do passado. Em uma das suas eminências está o convento de Christo, outrora habitado pelos cavalleiros d’aquella ordem militar.
É uma caza immensa com um templo notável por copiosas esculpturas no imaginoso estylo manuelino. Porção d’este grande senhorio monacal foi comprado pelo conde de Thomar, que actualmente rezide no castello de Gualdim Paes, primeiro mestre do Templo, que o arrancou aos mouros.
Ha aqui fabricas de fíação, e uma de papel.
O tortuozo rio Nabão deriva por meio da cidade, dividindo-a quazi a meio e dando-lhe um aspecto de Veneza em miniatura, com o seu largo canal.
Os moradores passam em botes, de um lado para o outro, e abordam ás ilhotas que estanceam na corrente. O canal forma onde quer que seja uma catarata, que se despenha sobre uma açude resvaladia.
Estas estradas aquosas são uma delicia no verão, quer a gente se vá de passeio por aquellas margens floridas, quer deslize em barco na limpida corrente.
O Nabão no inverno sobrepuja as margens e inunda ruas e cazas, mas, nos mezes estivos, é sitio lindo onde se pode viver, quazi de graça, do néctar e ambrozia dos seus fructos e flores. No frescor da manhã, póde-se subir em peregrinação até á Piedade, linda ermida no topo de uma montanha, para onde se sobe por duzentos e cincoenta degráos. De dez em dez, ha um patamar e um banco de pedra onde a gente pôde descançar e dar graças a « Nossa Senhora» que nos permitte ir chegando mais perto do seu relicário. Chegar lá acima não é medíocre proeza com tal clima; porém, quem o consegue é liberalmente recompensado com a belleza da capella e o magnifico ponto de vista.
Que aprazível me seria, deter-me ali!

(A Formosa Lusitania / por Catharina Carlota Lady Jackson ; versão do inglez, prefaciada e annotada por Camillo Castello Branco . – Porto : Livraria Portuense, 1877 . – 448 p., [20] grav. ; 25 cm.)

quinta-feira, outubro 21, 2010

A CABEÇA DA GÁRGULA


No romance “A Noite do Oráculo”, de Paul Auster, há um episódio em que a cabeça duma gárgula de pedra se desprende da fachada de um prédio de apartamentos, passando a poucos centímetros do crânio de Nick Bowen, uma personagem da narrativa que atravessa certas dificuldades no seu relacionamento conjugal.
A pedra que só por acaso não o matou, deu a Nick Bowen o ensejo de rapidamente reflectir sobre a vida e os seus imponderáveis. Devia estar morto, mas escapou ileso, pelo que a situação se lhe afigurou como uma segunda oportunidade de vida que lhe era concedida. Então, em rotura com o passado, resolveu não voltar a casa, tomando um avião para Kansas City, o primeiro que saía do aeroporto de La Guardia naquela noite em que ali chegou. Ia viver a sua segunda vida num lugar que lhe era inteiramente desconhecido, com pessoas que nunca tinha visto, partindo do zero ou de pouco mais. A dificuldade por que acabara de passar dera-lhe um suplemento de coragem para uma nova existência.
Assim, a cabeça da gárgula de pedra é uma boa metáfora para certos momentos das nossas vidas. Todos temos um tempo em que somos surpreendidos pela provação: uma doença grave, a morte de um filho ou de uma pessoa muito querida, ou essas outras formas de morte que são o afastamento e a separação. Felizmente que a cabeça da gárgula nem sempre nos despedaça o crânio. Ainda incrédulos e assustados, olhamos em volta como se não víssemos nada, sacudimos o pó das roupas, contemplamos os estilhaços de pedra no chão e acreditamos ainda mais nas nossas forças. É então que tomamos o avião para a nossa Kansas City, sabendo que nenhuma viagem é mais importante que aquelas que fazemos dentro de nós.

domingo, outubro 17, 2010

OS CADERNOS PORTUGUESES

Paul Auster (Newark, 1947)
Eu sabia que acabaria por comprar um caderno português: bastaria pegar num deles, bastaria senti-lo nas minhas mãos e eu não resistiria. Não havia neles nada de luxuoso, nada que desse nas vistas. Não, aqueles cadernos eram muito simplesmente um artigo prático – resistente, despretensioso, útil, de maneira nenhuma o livro em branco que poderíamos escolher como prenda para um amigo.

(Paul Auster em “A Noite do Oráculo”)


Procurem-se os ditos cadernos numa pequena papelaria do Largo do Calhariz, em Lisboa, ao lado do elevador da Bica. À semelhança do que aconteceu com Sidney Orr, narrador e protagonista do romance de Paul Auster, eles poderão propiciar encontros felizes com a escrita.

domingo, outubro 10, 2010

ACADEMIA SUECA - A MADRASTA


A ideia do título surgiu-me por ter lido, durante as férias, o “Elogio da Madrasta” de Mario Vargas Llosa. Embora neste livro se fale de uma madrasta benigna, mãe e amante dum enteado afinal bastante perverso, há literaturas para as quais a Academia Sueca tem sido uma madrasta das autênticas.
Tome-se como exemplo as literaturas de língua portuguesa, contempladas com o único prémio de José Saramago em 1998. Mário Vargas Llosa, peruano, é o sexto Nobel de língua castelhana depois de cinco escritores espanhóis, alguns praticamente desconhecidos do grande público: José Echegaray (1904), Jacinto Benavente (1922), Juan Ramon Jiménez (1956), Vicente Aleixandre (1977) e Camilo José Cela (1989). Nos trinta e três anos que vão de 1956 a 1989, a Espanha teve três laureados com o Prémio Nobel da Literatura, o que me leva a pensar que Portugal e o Brasil mereciam ter pelo menos mais um ou dois escritores entre os premiados da Academia Sueca.
Já cerca de 1960, conforme leio no diário de José Régio, se agitava o nosso meio literário face às personalidades portuguesas indicadas para o prémio Nobel. Miguel Torga fora proposto pelo professor e historiador francês Jean-Baptiste Aquaronte, e os nomes de Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro eram igualmente falados nos jornais como nobelizáveis. De Régio, porém, nem sequer se lembravam, conforme nos revela o próprio em magoada nota naquele seu diário.
Hoje, doze anos depois de Saramago, ocorre-me o nome de Agustina Bessa-Luís para preencher um dos lugares do Nobel que temos em falta. A sua escrita é poderosa e paradoxal, de difícil assimilação, embora nunca deixe de nos surpreeender e estimular. Mas que pensará Agustina do prémio da Academia Sueca? Proust, James Joyce e Jorge Luis Borges nunca o receberam e não deixaram por isso de figurar entre os maiores. Sartre foi nomeado em 1964 e recusou. Prémios são prémios, fazem parte de um certo mundanismo que se estabeleceu na instituição literária e que nem sempre se afirma pelas melhores razões. Porém, além das inerentes vantagens materiais, eles constituem um reconhecimento de facto e fazem luz sobre escritores e literaturas que apesar das suas valias não lograram chegar até ao grande público. Por isso sou por Agustina para Nobel da Literatura, embora receie poder ser já demasiado tarde para se lhe fazer essa justiça.

terça-feira, outubro 05, 2010

terça-feira, setembro 21, 2010

MÁXIMAS

"É sabido que o orgulho da mulher, uma vez ferido, não cicatriza nunca."

Lido em Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen.

domingo, setembro 19, 2010

CAMILO CASTELO BRANCO (1825-1890)


Em Camilo sempre me impressionou a sua capacidade de efabulação, o poderoso domínio da língua e o conhecimento que demonstrava ter dos grandes vultos da literatura do seu tempo, desde Eugène Sue, de quem foi largamente tributário, até ao Balzac da “Comédia Humana”.
Confesso que por vezes senti em relação ao escritor de S. Miguel de Ceide uma espécie de admiração envergonhada. Eça era sempre o Eça, mesmo com prosas bárbaras e histórias de santinhos milagreiros; Júlio Dinis, via-o como um astro desintegrado antes de chegar ao zénite; Garrett e Herculano, pais do nosso Romantismo, firmavam-se-me como combatentes da liberdade, exumadores da História e dos vínculos da nacionalidade portuguesa. Camilo, porém, o que era?
Em Agosto de 2009 e Maio de 2010 estive na Casa de Camilo em S. Miguel de Ceide. Talvez, dito de outra maneira, na casa do comerciante Manuel Pinheiro Alves, marido de D. Ana Plácido, mulher que pagou na Cadeia da Relação do Porto, tal como Camilo, o crime de adultério, intolerável à luz da moral burguesa do século. Um pouco antes, tinha lido “Camilo Broca” de Mário Cláudio e folheado “O Penitente” de Teixeira de Pascoaes, textos biográficos sobre o escritor de “Amor de Perdição”. Pela mesma altura, meti-me em “Eusébio Macário” e “A Corja”, novelas em que o ultra-romântico imita o estilo da nova escola realista de Eça de Queiroz. Escritos e publicados estes livros, parece que terá dito, em jeito de gozo, algo de parecido com o seguinte: “É tão fácil escrever neste estilo, que até eu consegui”.
Nestas últimas semanas, voltei ao convívio camiliano. Na Comunidade de Leitores de S. Domingos de Rana lê-se “Fanny Owen” de Agustina Bessa-Luís, drama vivido pelo novelista num triângulo amoroso que Manuel de Oliveira levou para o cinema com o título de “Francisca”. Em “Duas Horas de Leitura” e, sobretudo, em “No Bom Jesus do Monte”, Camilo explica-se, mas não convence. Pequenas não deverão ter sido as suas responsabilidades no desfecho da história de amor entre Francisca Owen e José Augusto Pinto de Magalhães.
Entretanto, por outras válidas razões, vieram-me às mãos os dois primeiros romances da trilogia camiliana a que Alexandre Cabral chamou o Ciclo da Felicidade: “Onde Está a Felicidade?”, que teve o acolhimento entusiástico de Herculano, e “Um Homem de Brios”. Deixei para outras núpcias o terceiro livro, “Memórias de Guilherme do Amaral”. Esta série romanesca, com laivos autobiográficos, é escrita em plena fase da sua maturidade literária. O escritor está no auge da criação, é uma figura reconhecida que publica nos jornais e edita em livro.
Conhecedor da literatura europeia, em especial da francesa, Camilo foi um homem que não viajou fora do país, assim como não viajaram José Régio e Fernando Pessoa (embora este tenha passado parte da infância e a adolescência na África do Sul). Além das fronteiras de Portugal, conheceu apenas, e por mero acaso, os caminhos entre Vigo e a província do Minho, quando, por morte do pai, deixou Lisboa para ser entregue a familiares de Vila Real e o vapor em que viajava, não conseguindo vencer o mau tempo à entrada da barra do Douro, teve que ir aportar àquela cidade da Galiza. Era menino e não mais voltou a sair de Portugal.
Temos então um homem que não viajou, que não fez estudos superiores, e que, no amor, raptou, traiu e abandonou as suas amadas; um homem que sovou e foi sovado, que conviveu com criminosos e de tal deixou testemunho nas suas “Memórias do Cárcere”; um diabo de língua e pena afiadas, vituperador da burguesia, do império do dinheiro e dos barões feitos à pressa, mas que não enjeitou o título que lhe foi concedido de visconde de Correia Botelho, nome ancestral da sua família; em suma, um homem múltiplo, estranho e complexo, um feixe de paixões e sentimentos imoderados.
Uma peixeira da Póvoa de Varzim, praia onde costumava estanciar por causa de maleitas que o afligiam, ter-lhe-á chamado, devido às bexigas que lhe desfeavam o rosto, “cara de areia mijada”. Como a peixeira não era a princesa Rattazzi, o novelista engoliu em seco e não foi capaz de responder. Estava habituado a demolir com a sua verve a prosápia dos ricos e dos poderosos, não sabia dirigir palavras más a uma mulher do povo.

quarta-feira, setembro 08, 2010

MANUEL TEIXEIRA GOMES (1860-1941)


Ando a ler os escritos literários desta personalidade invulgar, algarvio de Portimão, figura grada da República cujo centenário ora se festeja. Diletante e requintado, representante de interesses comerciais familiares (um pouco à semelhança de Cesário Verde) que o levaram a viajar pela Europa, afirmou-se como amante do belo, epicurista com arremetidas de estóico, criador de histórias eróticas e de narrativas de viagens.
Foi ministro plenipotenciário em Londres a seguir à implantação da República (a Londres de Jorge V, onde se exilara D. Manuel II e onde pairava ainda a sombra do Marquês de Soveral). Foi Presidente da República entre Agosto de 1923 e Dezembro de 1925. Retirado em Bougie (ou Bejaïa) na Argélia (qual Vale de Lobos de Herculano), aí morreu.
A sua primeira obra, “Inventário de Junho”, publicada aos trinta e nove anos, abria com uma curiosa advertência: ESTE LIVRO NÃO TEM UTILIDADE NO COMÉRCIO…

terça-feira, agosto 31, 2010

NAVEGAÇÕES SEM BÚSSOLA

Vibrava os dedos sobre o berço das teclas, o ecrã colocado propositadamente de viés para que outros não pudessem ler o que era só dela: uma conversa de palavras escritas em jeito de parada e resposta, frases curtas, um diz tu digo eu despojado de apuro e à velocidade de cruzeiro da linguagem em rede. Se alguém se aproximava minimizava a página, ficava uma pequena barra na base do ecrã, e passava a um espaço anódino, desses que não inspiram a curiosidade de ociosos e demais criaturas perversas.
O trabalho que aquilo dá! Primeiro é preciso fazer um registo, escolher um pseudónimo (ou nickname), dizer se procura homem ou mulher, faixa etária desejada, indicar os dados pessoais: idade, estado civil, nível de escolaridade, profissão, se gosta de cinema, de música ou de futebol, se tem algum hobby particular, se costuma ler ou passar indiferente pela carranca dos livros. É conveniente publicar uma fotografia, ajuda muito a encontrar a pessoa certa. Os administradores do portal, sempre atentos, vão dando sugestões e exibindo novos perfis, de acordo com os gostos e interesses manifestados pelos utilizadores.
O nome deste sítio na Internet forma-se a partir do radical meet (de encontrar, claro), acrescentando-se-lhe ix, ou ex, ou qualquer outra partícula sufixal que se me varreu da memória. Meetix, meetex, ou lá o que seja.
A coisa parece que resulta. Uma senhora de Cascais, apresentável mas já em fase de mudança de estação, arranjou por este meio um namorado jovem e bem apessoado. Um homem de Sintra, inviamente casado, conseguiu estrear-se no adultério de raiz internética após breves dias de navegação. Um cavalheiro da Amadora, viúvo e aposentado da função pública, encontrou uma brasileira de Minas que agora quer vir até à terrinha dos descobridores para casar com ele. Estes os casos de que tenho notícia, muitos mais haverá, estou certo.
Ela sentava-se ao computador entre duas a três horas ao fim do dia, esquecia o jantar, esquecia a televisão. Isto para além do tempo que trazia acumulado do local de trabalho, sobre o qual não há certezas, apenas umas temerárias suposições. Entrava no portal dos encontros, ia para o chat, minimizava a página quando o serviço apertava ou o superior hierárquico rondava por perto, lançava uns dados no sistema da empresa, voltava ao portal. Quando saía do escritório, pelas cinco e meia da tarde, ia exausta de emoção.
Entretanto, pelo correio electrónico iam chegando mensagens de homens interessados no seu perfil. Era só marcar o tête-à-tête, de preferência num local discreto a uma hora discreta, como entre as cinco e as sete da tarde, logo se veria o que aquilo dava. Sim, é extraordinário, muito mais interessante em pessoa que na fotografia, e na próxima sexta-feira à noite, que tal sairmos para nos conhecermos melhor? Ou então, em caso de interlocutor mais objectivo: Gostei muito que tivesse vindo, o meu apartamento é já aqui ao virar da esquina, podemos subir e tomar um refresco.
Parece que nunca passou dos gozos virtuais, dos encontros sem consequências, mas o marido, ciumento e de mau carácter, farejando os mais improváveis eflúvios, deu em desconfiar daquela devoção informática. Espiou-a como o pide ruim espiava a vítima, e armou uma cena de violência doméstica. Toma lá que é para aprenderes! Depois abriu o computador e extraiu o disco para ser inspeccionado por técnicos da sua confiança: queria descobrir o mapa de todos os mares navegados pela cibernauta.
Que história triste! Como é deplorável a personalidade destes homens que só ficam satisfeitos quando recolhem certezas de tudo. Arruínam a vida própria e a alheia pelo azougue dum caso, pela brisa dum facto, quando mais sensato é deixar o coração à segurança do que não é seguro, ao poder afrodisíaco de não saber tudo, de não saber nada ou até de ser o último a saber.
Desconheço os desenvolvimentos recentes da história desta mulher. Sei que o marido anda aí pelas tascas do bairro, a língua metida nos gargalos das minis, trincando coiratos e tiras de entremeada. Quanto a ela, vi-a passar no outro dia a caminho da paragem do autocarro: ia ligeira e perfumada como uma ave do Éden. Por momentos, tive a tentação de me registar no tal meetix ou meetex para a encontrar e poder falar-lhe, mas felizmente que não fui por aí. Ainda sou do tempo do papel de carta e das declarações de amor lançadas do empedrado das ruas para o alto das sacadas. Ainda me lembro das serenatas, dos bailes nas sociedades recreativas e dos românticos passeios de domingo nos jardins públicos. Desconfio das facilidades da Internet e do falso brilho das suas páginas. Além disso, há ainda uma razão de peso: tenho em minha casa quem passe largo tempo nestas navegações sem bússola por baixios e escolhos de morte. É melhor não me aventurar em tão traiçoeiras singraduras. Quem sabe o que poderia encontrar por lá?

domingo, agosto 01, 2010

EXCERTO DO DIÁRIO DUM BANDEIRANTE

Você já viu como ele está grudado de olho no céu esperando descobrir entre as estrelas o Cruzeiro do Sul? E como aponta a orelha às laranjeiras para ouvir cantar o sabiá? Gente, cara mais bobo não existe desde que Pêro Vaz de Caminha, o letrado do achamento, se espantou com os homens pardos e as moças de cabelos muito pretos e compridos com as suas vergonhas tão cerradinhas e tão limpas que até dava vontade de não ter vergonha nenhuma! Pois é, deixem-no com as estrelas e o incerto gorjeio das aves, que o mais certo que lhe tocará é o cheiro que se manda do rio Tietê, o arzinho fresco da manhã picando-lhe o nariz, a agitação do metrô e do ônibus, a espuma do chope untando-lhe a boca. Vinho nem vê-lo, nenhuma feijoada das que se comem lá na terrinha lhe cairá no prato. Cruzeiro do Sul? Fique-se pela Ursa Maior ou a Ursa Menor! Sabiá de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu? Contente-se com o rouxinol de Bernardim!

domingo, abril 25, 2010

23 de Abril, comemoração do Dia Mundial do Livro - O CONTADOR DE HISTÓRIAS


HISTÓRIA TRISTE DA MULHER-A-DIAS QUE GOSTAVA DE LER POESIA


Antes de ter começado a trabalhar como mulher-a-dias, tinha sido operária numa fábrica de calçado, o salário certo ao fim do mês, refeições subsidiadas pela empresa, creche para as crianças e assistência médica gratuita, tudo regalias concedidas de livre vontade pela entidade empregadora ou decorrentes do contrato colectivo de trabalho em vigor.
Foi um bom emprego até ao dia em que uns operários da Malásia ou do Paquistão, não se sabe ao certo, se dispuseram a fazer o mesmo serviço por uma pequena parte do que por cá se pagava, prescindindo do refeitório, da creche e da assistência médica gratuita, luxos que não eram precisos lá por aquelas bandas onde a gente era saudável e de pouco alimento, e os miúdos, filhos dos operários, tinham sido habituados a andar pelas ruas, entregues a si mesmos, sem necessitarem de mais cuidados que aqueles que na natureza são dispensados pelos progenitores a qualquer cria animal.
Como tinha a renda de casa para pagar, o frigorífico para abastecer, as crianças para vestir e calçar, teve que procurar trabalho. Começou por lavar escadas, arranjou umas senhoras para quem passava a ferro e fazia arranjos de costura, foi companhia de uma idosa que convalescia de um acidente vascular cerebral, até que conseguiu um serviço de quatro horas diárias em casa dum senhor que era professor universitário e tinha uma biblioteca de muitas centenas de livros. Só a limpar o pó dos volumes, a arrumá-los meticulosamente nas estantes ou a retirá-los para cima da secretária do professor, levava ela uma parte considerável do seu horário de trabalho.
Este senhor, seu patrão, era homem de poucas falas: dizia bom dia ou boa tarde, faça isto ou faça aquilo, e mais além não ia nas suas práticas, embora se soubesse que era pessoa com dotes de conversação, de grandes e circunstanciados discursos em tudo quanto a matéria professoral dissesse respeito.
Pelo total de vinte horas semanais que fazia como mulher-a-dias em casa do professor de literatura – é a altura de dizer, para que se saiba, a área do conhecimento em que ele exercia a sua cátedra –, recebia mensalmente um valor próximo do salário mínimo nacional, um rendimento apesar de tudo satisfatório, tendo em conta as suas fracas qualificações profissionais e o facto de trabalhar apenas a metade das horas de qualquer assalariado normal. Assim, ainda lhe sobrava tempo para acompanhar os filhos e deitar a mão a um ou outro serviço que fosse aparecendo.
O senhor professor passava muito tempo ao computador a lançar uns apontamentos que, pelo que percebera duma conversa telefónica, eram destinados a um pós-doutoramento ou a qualquer coisa parecida começada em “pós” e acabada em “ento”. Como poderia ela saber exactamente do que se tratava se só conhecia as palavras simples de todos os dias, pouco entendendo das conversas que lhe ouvia ao telefone com os colegas e amigos? Uma coisa sabia, porém, era que aquilo que o professor escrevia ao computador era um estudo sobre versos e gente que fazia versos, poetas, como aquele seu antigo colega que compunha quadras para adornar os cravos de papel de S. João e um dia até lhe fizera uma que lhe parecera muito bonita mas de cujos versos há muito tempo se havia esquecido.
Soube que os apontamentos eram sobre versos e gente que fazia versos porque um dia, quando limpava o pó ao ecrã do computador, num breve momento em que o professor fizera uma interrupção para tomar café, pôde ler na página aberta a seguinte quadra:

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?

E outras se lhe seguiam, embora não as tenha conseguido fixar, lendo depois as considerações que o professor fazia sobre o autor, um tal Almeida Garrett, poeta que pelo nome até parecia estrangeiro, embora, coisa admirável!, estivessem os versos escritos em português e, tanto quanto lhe era dado entender, do melhor que já tinha lido, que era afinal muito pouco ou quase nada.
Ficou tão impressionada com aquela leitura que no sábado seguinte, estando de folga, se dirigiu à biblioteca municipal para ler os poemas do tal Almeida Garrett. Deu com o livro onde se encontrava o poema da barca bela, tinha um título bonito, “Folhas Caídas”, embora lhe fizesse lembrar o Outono e os momentos tristes da vida, como aquele em que o marido saiu de casa, deixando-a sozinha com o encargo dos filhos. Então leu com atenção o poema. A segunda quadra era igualmente bela:

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

E continuou, não conseguindo deixar de ler e reler todo o poema. Perdeu a noção de quantas vezes passou os olhos pela luz daqueles versos. Os olhos e a alma, que era dentro dela que sentia aquela formidável força que se soltava de cada sílaba, uma música colorida que lhe trazia uma inexplicável sensação de alegria e sofrimento:

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela…
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador!

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador!

E perante a revelação que ali se lhe oferecia, nunca mais foi capaz de deixar de ler os poetas.
A história, diga-se desde já, tem um final infeliz. Em casa do professor, a mulher-a-dias começou a descurar grosseiramente os seus deveres laborais. Sempre que o patrão não estava em casa, esquecia-se do trabalho e passava grande parte do tempo a ler poemas, dizendo-os por vezes em voz alta, desejosa de sentir o ouro e a química do verbo, de ouvir os ritmos, não lhe bastando já o silêncio anódino da leitura mental. A poesia tornou-se para ela um vício que não conseguia dominar, e por mais de uma vez se lembrou duma sua conhecida que fora despedida duma casa onde trabalhava porque na ausência dos patrões ia desbastando as bebidas da garrafeira até não ser capaz de se aguentar de pé. Também a poesia era agora para ela uma espécie de álcool forte e irrecusável.
O pior sucedeu quando certa manhã, regressando o professor mais cedo a casa, deu com o trabalho todo atrasado e a mulher-a-dias sentada na sua secretária a folhear os livros de poesia do seu estudo em preparação. Foi despedida, e aí está a injustiça cometida por aquele insensível professor.
Sim, injustiça e das maiores, porque tratando-se de um professor de literatura, era seu dever estimular, e não reprimir, o sonho poético da sua servidora. Coisas que sucedem quando o apego à poesia e às obras dos poetas é fruto da vaidade académica, do gozo de se saber admirado pelos artigos publicados em revistas da especialidade e de sentir o deslumbramento de colegas e alunos perante o fulgor do seu magistério. Para a mulher-a-dias a poesia era um deleite inútil, feito de satisfação interior, sem cálculo ou premeditação, por isso autêntico e puro como o musgo das pedras ou o vento que se mete pelas copas das árvores.
Tudo, ou quase tudo, foi tirado a esta mulher: o emprego, o amor, a felicidade duma família unida e equilibrada. Só não conseguiram tirar-lhe a capacidade de sonhar.
Uns tempos mais tarde, estando o professor de literatura a folhear um dos seus livros, viu sublinhados por traço alheio, num poema de Natália Correia, os seguintes versos:

Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.

Quedou-se pensativo por uns longos instantes, mas era tarde de mais para emendar o erro.

domingo, fevereiro 14, 2010

14 de Fevereiro, aquele dia

S´abuser en amour n´est pas mauvaise chose.


(RONSARD, Le Second Livre des sonnets pour Hélène, XLII)

sábado, janeiro 16, 2010

"O MUNDO À MINHA PROCURA"

O lugar da autobiografia tem sido encontrado num amplo campo interpretativo que vai da referencialidade à ficção. O autobiógrafo, investido da dupla condição de sujeito e objecto da escrita, tem que lidar com a memória (ou com aquilo que ficou dela) e com a selectividade (por vezes inconsciente) dos conteúdos de vida a transmitir. O arco do tempo da narrativa, arrancando as mais das vezes do período da infância, não dá azo a relatos fidedignos, a memórias nítidas, e o mais importante não é ser sincero, mas ter vontade de o ser ou simplesmente de parecer que o é.
Ruben A. (1920-1975) deixou uma bela autobiografia em três volumes: O Mundo à Minha Procura. No final do capítulo III do primeiro volume, escreveu: Não sei se foi o Adolfo Casais Monteiro que um dia, na aula de Português, me pediu para explicar um trecho dos Lusíadas depois de ter lido o meu exercício sobre o assassínio de Inês de Castro. O autor começa por não saber, por não ter a certeza, mas a partir desta dúvida inicial tudo se passa como se Adolfo Casais Monteiro tivesse sido efectivamente o professor do jovem Ruben Andresen Leitão naquele liceu do Porto onde fez os estudos secundários. O poeta da presença surge como o único docente a reconhecer no estudante refractário à Matemática e ao Latim o espírito arguto e o sentido trágico da vida e do amor que o levava a eleger o episódio de Inês de Castro como a passagem capital do grande poema camoniano. E termina assim: Passados poucos meses, a liberdade mental de Adolfo Casais Monteiro meteu-o na cadeia. Apareceu, então, como professor de Português o animal que regia Latim e que a meu respeito tinha a mais fraca das opiniões.
Aqui está um caso em que é justo que nos perguntemos se o texto é o reflexo da vida do autor ou se não será ele mesmo a instância criadora dessa vida, efabulação e reinvenção do eu autobiográfico?

sexta-feira, janeiro 01, 2010

A NÃO-INSCRIÇÃO

A leitura que tenho feito de algumas partes do livro Portugal Hoje – O Medo de Existir, do filósofo José Gil, fez-me levar os conceitos de inscrição e não-inscrição para o caso da juventude dos nossos dias.
José Gil fala em não-inscrição como uma ausência de desejo no sentido do real, um não acontecer, que no caso vertente pode muito bem estender-se a um não fazer, ou a um deixar que os outros façam – quase sempre os pais.
Também já passei pela juventude, e esta inclinação para reflectir sobre a actual pode parecer uma vontade de tecer comparações, de dizer: hoje é assim, mas antigamente era diferente, para melhor. Não vou por aí! Acho até, em certo sentido, que os jovens dos nossos dias são mais sensatos, mais solidários e até mais honestos do que os que se descobriram nos anos de ouro da vida durante as décadas de sessenta e setenta do século passado. Em que medida o ficaram a dever a esses que os precederam, os seus educadores, é matéria que parece não oferecer grandes dúvidas, pois alguma marca há-de deixar a educação, para bem ou para mal, acreditando porém que apesar da instabilidade que nos últimos trinta anos tem caracterizado a instituição familiar, a educação que demos aos nossos filhos foi, sempre generalizando, melhor e mais completa do que a que recebemos dos nossos pais.
A falta de inscrição no real, a acomodação à sombra da família, prolongando os anos que antecedem a entrada no mercado de trabalho, é uma resultante das dificuldades duma economia que não é geradora do pleno emprego e que muitas vezes só tem para oferecer a precariedade, mas também a expressão duma falta de desejo, ou de vontade que alguma coisa aconteça.
Um amigo que é director duma empresa de formação profissional, falava-me há tempos dum seu colaborador, um jovem licenciado em sociologia que estava a finalizar um mestrado e era o mais dedicado do departamento em termos profissionais. E acrescentou a seguinte informação: tinha-lhe morrido o pai entre os dezassete e os dezoito anos, quando ele se preparava para entrar na universidade, e esse acontecimento dramático tinha acabado com os dias plácidos da sua juventude. – É isso, às vezes é preciso sofrer um profundo revés, passar por uma grande infelicidade como a perda de um pai, importante no plano afectivo e igualmente decisivo em termos de subsistência, para que haja uma possibilidade de inscrição, uma vontade de agarrar pelos cornos o corpulento boi da vida.
São também às vezes acontecimentos capitais como uma doença ou um acidente que podem levar à reflexão e ao amadurecimento da consciência. Pascal falava daquilo a que chamou le bon usage des maladies, ou seja, aproveitar a inacção própria da doença, esse tempo só aparentemente infértil, para um exercício de introspecção e de descoberta de si – uma ruptura, afinal, com a não-inscrição.
E é assim que a partir de José Gil se geraram estas reflexões modestas, sonolentas e feitas um pouco ao correr das teclas. Há os que por esta altura de passagem abrem garrafas de champanhe. Como apesar de tudo há que ter esperança, esta é a minha única homenagem ao ano-novo.