sábado, dezembro 05, 2009

QUARTA-FEIRA, 2 DE DEZEMBRO


, Saiba vossa excelência que há de tudo, com o tempo, já nem ligamos, cada um come como aprendeu, mas a ideia com que nós ficámos, na nossa cabeça, é que o senhor doutor era uma pessoa educada, entrava, dava as boas-tardes ou as boas-noites, dizia logo o que queria comer, e depois não se dava mais por ele, era como se aí não estivesse, Comia sempre sozinho, Sempre, o que tinha era um costume, Qual, Quando nós íamos a tirar o outro talher da mesa, o que estava defronte dele, pedia que o deixássemos ficar, que assim parecia a mesa mais composta, e uma vez, comigo, até se deu um caso, Que caso, Quando lhe servi o vinho, enganei-me e enchi os dois copos, o dele e o da outra pessoa que lá não estava, não sei se está a perceber, Estou a perceber, estou, e depois, Então ele disse-me que estava bem assim, e a partir daí tinha sempre o outro copo cheio, no fim da refeição bebia-o de uma só vez, fechava os olhos para beber, Caso estranho, Saiba vossa excelência que nós, criados, vimos muitas coisas estranhas,

JOSÉ SARAMAGO, O Ano da Morte de Ricardo Reis



Saíra do debate sobre a Mensagem de Fernando Pessoa. "Brasão", "Mar Português", "O Encoberto" – BENEDICTUS DOMINUS DEUS NOSTER QUI DEDIT NOBIS SIGNUM, que o mesmo é dizer ABENÇOADO SEJA O SENHOR NOSSO DEUS QUE NOS DEU O SINAL.
Rua Garrett arreada de chuva e iluminações de Natal. Ultrapassara a estátua do grande poeta que nem sequer foi nomeado nos poemas do livro. Viriato e D. Tareja, O Bandarra e António Vieira – esses sim, entre outros. O cheiro do bairro de Dinis Machado, algures entre a Rua do Loreto e o Largo do Calhariz. Não levava destino certo, deixou-se ir por uma das ruas do bairro, mas logo arrepiou caminho, enquanto um casal de estrangeiros examinava um mapa da cidade à luz lívida dum candeeiro com corvos. Espreitou a papelaria dos célebres cadernos portugueses de que fala Paul Auster em A Noite do Oráculo; lá estava, na montra, um exemplar do romance. Depois meteu-se numa tasca da Rua da Bica, mesmo em frente do elevador que descansava da vagarosa dobadoura das viagens.
Estava sozinho, mas o empregado expedito colocou-lhe dois copos sobre a mesa, um para ele e outro para uma pessoa que lá não estava. Um lapso, ou talvez não. Por coisas que iam sucedendo, firmara a ideia de que nada lhe acontecia por acaso. Lembrou-se de um trecho de O Ano da Morte de Ricardo Reis, e quando a garrafa veio encheu os dois copos. Sabe que não bebeu o vinho do segundo, embora não consiga recordar se quando se levantou, depois de pagar a conta, o deixara cheio ou vazio.
A caminho da estação do metro, moderadamente bebido, lúcido e contente, parecia-lhe que alguém o acompanhava.

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