domingo, agosto 02, 2009

SOBRE AS VIAGENS







O Régio era uma pessoa muito modesta. Esteve a explicar-me que não precisava de sair do País porque aqui encontrava tudo. Contou-me de um sapateiro de Portalegre que tinha sodomizado a filha. Portanto, dizia ele, todo o universo estava em Portalegre. Fiquei horrorizado com esta ideia. O universo todo não está em Portalegre. (…) Tive a percepção imediata de que aquilo era uma redução absurda. O que não é de espantar no Portugal de Salazar. Era a isso que o Salazar nos queria reduzir. (…) Todos aqueles homens da geração da Presença, como depois os neo-realistas, foram vítimas. Não perceberam que havia mais mundos no mundo. Não os deixaram.

Vasco Pulido Valente em entrevista à revista Ler (Julho de 2009)

Neste meu estado, falam-me em viagens! Digo, eu próprio, que tenciono ir à Itália no próximo ano; – e o mais curioso é que efectivamente alimento esse vago plano: ir lá com os Mirandas. Na verdade, porém, que me interessam as viagens? Que me interessam pessoal e profundamente? Que poderão ensinar-me que eu não saiba, dar-me que eu não tenha? (…) É aos extrovertidos que as viagens interessam: aos cujo relativo vazio de vida interior se tapa com uma aparência de enriquecimento. Eu sei que é em mim que tenho o mundo – o mundo que me é possível apreender.

José Régio em Páginas do Diário Íntimo

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está para mim em parte alguma. (…) Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.

Fernando Pessoa / Bernardo Soares em O Livro do Desassossego



Não há nada como dar a palavra aos próprios!

2 comentários:

Ricardo António Alves disse...

O Manuel Teixeira-Gomes dizia que os nomes que correspondiam ao locais tinham uma ressonância que se perdia indo lá; e dava o exemplo de Cartago.
O Ferreira de Castro fartou-se de verificar isso mesmo.
O Júlio Dantas escrevia (cito de memória): «Viajar, que horror! O que é bom é ter viajado. Os contratempos passam e as boas recordações ficam»...

Manuel Nunes disse...

Sim, concordo com essa ressonância, feita de memórias e desejo, que parece haver nos nomes das cidades e lugares que não conhecemos. Quando lá se chega, porém, tudo muda de figura. Dou-lhe dois exemplos que se passam comigo: Atenas e Roma. Nunca visitei a primeira, portanto a imagem que guardo dela é a da História, das leituras, das construções ideais. Quanto a Roma, que conheci, tenho dela uma imagem muito mais próxima de qualquer outra cidade europeia: há os resturantes, o metro, os museus, etc. Acho que os lugares são melhores quando os sonhamos.
Quanto ao Dantas, pim!, parece-me um caso parecido com o do Jacinto queirosiano: viajar de Paris a Tormes, mesmo numa carruagem de luxo, é uma maçada; mas depois gosta-se.