domingo, agosto 30, 2009

MARIZA

Um poema esotérico de Fernando Pessoa datado de Outubro de 1932.

VISUS NOCTURNUS

A empregada era uma adolescente com corpo de mulher adulta. O cabelo descia-lhe pelas costas, os olhos pareciam puros, mas a boca, a parte do corpo que está mais perto da alma, dava sinais de sensualidade e volúpia. Estavam ambos sentados num sofá, diante duma lareira onde ardiam grossos troços de lenha. Ela tinha na mão um cálice de porto, curvo e cintilante, que de vez em quando levava aos lábios. Falavam de coisas do escritório, assuntos profissionais como balanços e balancetes, conferência de contas, cálculos de amortizações e reintegrações. Ele tinha sobre as pernas um maço de papel contínuo, de listras verdes, cujas folhas ia separando pelo picotado. Ela afogueava-se com o calor que vinha do lume e levava a mão à gola alta da camisola de lã, tentando aliviar a pressão daquele colar apertado. Então, como não conseguisse afastar o desconforto, tirou a camisola, deixando entrever o limiar dos seios sob a filigrana negra do sutiã. Ficara ainda mais bela, com os cabelos descompostos e os lábios túmidos como gomos de fruta. Depois despiu as calças, tirou as botas e as meias, e o mármore das pernas coloriu-se dos reflexos do fogo.
Um feixe de luz, real como a manhã que se anunciava, caiu-lhe sobre as pálpebras frouxas, gastas, cansadas duma vida de lançamentos a débito e a crédito. Estava sozinho, como sempre. Levantou-se, ao mesmo tempo contrariado e feliz: tinha de abrir o escritório às nove, era a hora a que chegava a empregada. Talvez o sonho voltasse na noite seguinte.

quarta-feira, agosto 19, 2009

ALBERTO DE SERPA (1906-1992)


Varanda, minha varanda
donde avisto
tudo quanto não se vê!
ALBERTO DE SERPA, Varanda, Coimbra, Edições presença, 1934. Dedicado ao Poeta António Botto, ao Poeta José Régio e ao Pintor Carlos Carneiro.

terça-feira, agosto 18, 2009

LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO

JÚLIO POMAR, Lusitânia no Bairro Latino (retratos de Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Sousa Cardoso), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Estes partiam de comboio. Sabia-se bem ao que iam.

segunda-feira, agosto 17, 2009

IN SITU


Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Morei numa casa velha,
Velha, grande, tosca e bela,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...
JOSÉ RÉGIO, "Toada de Portalegre", Fado, 1ª edição, Coimbra, 1941.

domingo, agosto 16, 2009

PLOTINA - A propósito de "Memórias de Adriano"

Plotina, imperatriz, esposa de Trajano


Lembro-me, Plotina, de quando demos as mãos
naquele dia de Inverno em Antioquia. O sismo
derrubara as traves das casas,
espalhara um cheiro de morte
nas florestas e praias da Síria,
e entre o desânimo dos soldados, que viam
na catástrofe o presságio de próximas derrotas,
só o Imperador,
heroicamente obstinado, acreditava nos reflexos
de oiro lavrados nas areias da Ásia.

Lias-me um poema grego, a tua voz era
um cântico de musa, e um diadema de volutas
cingia-te a fronte. Tive a certeza,
naquele instante de suprema elevação, feito
de poesia e dos mais puros afectos,
de que eram os mesmos os caminhos
por onde seguíamos, que tu me conhecias e amavas
como o vento conhece e ama
as copas das árvores, os cabelos das mulheres,
o delírio ondulante das searas
nas tardes rubras do mês das espigas.

Estive sempre longe e perto de ti. Busco agora,
nas folhas da memória, o viso terno do teu rosto de diva.


Amei-te mais com a alma e menos com o corpo,
e só por isso foste verdadeiramente minha.

Passaste como a ave
que risca os céus e se detém no olhar
de quem está preso à terra.
Salvaste-me.

quinta-feira, agosto 06, 2009

PEREGRINAÇÕES (continuação)


Torre do Prior do Ameal, integrada na antiga cerca de Coimbra. Ali viveu António Nobre, o poeta do , que lhe chamou a Torre de Anto, a sua torre.


Ó meu cachimbo! Amo-te imenso!
Tu, meu turíbulo sagrado!
Com que, bom Abade, incenso
A Abadia do meu passado.

……

Por alta noite, às horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para falar contigo a sós.


E a noite perde-se em cavaco,
Na Torre de Anto, aonde eu moro!
Ali, metido no buraco,
Fumo e, a fumar, às vezes… choro.

PEREGRINAÇÕES (continuação)

Apesar da simpatia com que fomos recebidos pelo casal zelador da casa, impressionou-nos o despojamento da mesma e a singeleza documental da biblioteca. Na casa de Ossela, o visitante vê a cama onde nasceu o grande escritor, os sapatos e a mala que usou na sua célebre volta ao mundo, e pouco mais. Na exposição da biblioteca encontramos exemplares dos títulos publicados e das respectivas traduções, como, por exemplo, os fascículos da primeira experiência romanesca de Ferreira de Castro, aos dezasseis anos de idade. Na fachada de um desses fascículos podemos ler:

J.M. Ferreira de Castro

CRIMINOSO
POR
AMBIÇÃO

Sensacional romance
(expurgado de phantasia)

Fascículo III

Empreza Editora

BRAZIL-1916


Surpreendeu-nos descobrir um romance “expurgado de fantasia”, como se a fantasia não fosse a essência da matéria romanesca. Do que eram capazes aqueles editores brasileiros de princípio de século para venderem os seus livros!

quarta-feira, agosto 05, 2009

PEREGRINAÇÕES (continuação)

Camilo nunca foi feliz na casa de S. Miguel de Ceide. Herdada do marido de Ana Plácido, por lá viveu durante vinte e sete anos de intensa criação literária. Recebia Castilho e os seus discípulos, que vinham de Lisboa para o visitar, como atesta o tosco monumento de pedra erguido à entrada da propriedade. Deu um tiro na cabeça, sentado numa cadeira de baloiço que ainda lá está como testemunha muda do drama de um desistente. Foi em 1890, um ano depois do suicídio de Soares dos Reis, um ano antes do de Antero de Quental.

terça-feira, agosto 04, 2009

PEREGRINAÇÕES


A casa de José Régio. Aliás são duas casas: a dos pais, ao centro, e a da madrinha Libânia, com o seu jardim e mirante, à direita. A esta se recolheu o Poeta no final da sua vida, nela morrendo em 22 de Dezembro de 1969 em consequência de um enfarte de miocárdio que não quis tratar no único local onde o poderia fazer com alguma probabilidade de êxito: o hospital.Em Vila do Conde há ainda a casa onde, entre 1881 e 1891, viveu Antero de Quental. E muito próximo desta, praticamente na mesma rua, uma que foi habitada por Camilo Castelo Branco.

domingo, agosto 02, 2009

SOBRE AS VIAGENS







O Régio era uma pessoa muito modesta. Esteve a explicar-me que não precisava de sair do País porque aqui encontrava tudo. Contou-me de um sapateiro de Portalegre que tinha sodomizado a filha. Portanto, dizia ele, todo o universo estava em Portalegre. Fiquei horrorizado com esta ideia. O universo todo não está em Portalegre. (…) Tive a percepção imediata de que aquilo era uma redução absurda. O que não é de espantar no Portugal de Salazar. Era a isso que o Salazar nos queria reduzir. (…) Todos aqueles homens da geração da Presença, como depois os neo-realistas, foram vítimas. Não perceberam que havia mais mundos no mundo. Não os deixaram.

Vasco Pulido Valente em entrevista à revista Ler (Julho de 2009)

Neste meu estado, falam-me em viagens! Digo, eu próprio, que tenciono ir à Itália no próximo ano; – e o mais curioso é que efectivamente alimento esse vago plano: ir lá com os Mirandas. Na verdade, porém, que me interessam as viagens? Que me interessam pessoal e profundamente? Que poderão ensinar-me que eu não saiba, dar-me que eu não tenha? (…) É aos extrovertidos que as viagens interessam: aos cujo relativo vazio de vida interior se tapa com uma aparência de enriquecimento. Eu sei que é em mim que tenho o mundo – o mundo que me é possível apreender.

José Régio em Páginas do Diário Íntimo

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está para mim em parte alguma. (…) Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.

Fernando Pessoa / Bernardo Soares em O Livro do Desassossego



Não há nada como dar a palavra aos próprios!