quinta-feira, fevereiro 28, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (12)


Ester veio hoje ao meu gabinete pela terceira vez. É difícil não reparar nos seus olhos de uma claridade quase líquida, ainda belos, surpreendentes numa mulher já tão avançada na carreira dos anos. Admiro-lhe a forma elegante como se senta, a saia cinzenta de fino corte, a blusa vistosa sob o casaco de malha onde radia a fortuita luminescência de uns botões de madrepérola.
De todos os deslocados que foram encaminhados para a ajuda psicológica, é este o caso que menos me preocupa. Às vezes, durante a conversa que mantenho com ela, consegue ser jovial. Há momentos, porém, em que se lhe turba o brilho dos olhos e as rugas do rosto, em que quase não se repara, conferem-lhe uma inesperada expressão de melancolia. É nestes momentos que sinto tocar a zona escura da sua alma.
Escuto-a. Conta-me coisas antigas dos seus tempos de moça, quando era a mulher mais formosa da aldeia e não havia homem que, perante si, ousasse ficar indiferente. Tempos difíceis para quem, como ela, trabalhava nos campos. Uns emigravam, outros, para não se afundarem na miséria, desenvolviam as mais variadas estratégias de sobrevivência. Ester saiu de casa dos pais e foi viver por conta de um poderoso senhor da cidade, um homem que mandava nas polícias de todo o distrito, guardador da ordem pública e dos silentes rebanhos de gente.
Houve um período, porém, em que alastraram as reivindicações dos trabalhadores. No surto das greves, os homens e as mulheres ficavam em casa sem sair para os campos, as sementeiras a perderem-se pela renúncia dos braços. Era então que a Guarda procurava os desertores nos lugarejos ou nos tugúrios isolados onde viviam, metia-os em camionetas de caixa aberta à força do poder das espingardas e entregava-os nas terras dos senhores que ansiosamente esperavam pelos seus braços de aluguer. Ester acompanhou tudo da gaiola doirada onde vivia, serva e rainha na casa do poderoso senhor, e quando saiu a ordem para a detenção dos cabecilhas da revolta, correu a avisá-los, para que não os alcançasse o braço da lei. Salvou os perseguidos, mas perdeu-se a ela.
Ao longo das sessões, venho notando que evita falar dos seus problemas, razão por que vem, semanalmente, ao meu gabinete. Pergunto-lhe o que pensa da nova aldeia, do canal de televisão e dos serviços de apoio do empreendimento, tento pegar no infeliz episódio da destruição do televisor, mas ela torneia as minhas questões. Responde-me evasivamente e, quando menos se espera, já se afunda no pélago das memórias. Memórias de água, diz-me em certo momento, e eu sinto que não posso insistir mais, que tenho de ouvir as suas recordações até ao último minuto da sessão, e que essa será a única forma de a poder ajudar.
Fala-me de Josué, de Jonas, de Daniel, do infeliz Jacob que se finou na incandescência de uma tarde de Verão, à hora em que se fazia sentir, em toda a plenitude, o rescendor único das estevas do campo. Faz-me recuar aos tempos em que eram todos jovens, antes, muito antes de lhes submergirem as vidas e os afectos numa massa de água sustida por um paredão de cimento com noventa metros de altura. Fala-me de Salomé, a que repousa no leito do lago por o marido ter recusado a trasladação dos seus restos mortais. Salomé, uma mulher nervosa e beata que fez um filho fora do casamento e que saiu da aldeia por não ter sido capaz de enfrentar a reprovação geral dos conterrâneos. Voltou mais tarde, sem a criança, a qual, segundo ela, teria morrido. Verdade? Mentira? Nunca se soube ao certo. Salomé morreria uns anos mais tarde, ainda jovem, de um mal na barriga.
Ester continua a falar até que termine o tempo que lhe está reservado. Eu já conhecia o episódio da recusa da trasladação: o que foi seu marido, Josué, vem regularmente ao gabinete de ajuda psicológica. Só não sabia o nome da mulher, as circunstâncias da sua vida conjugal, nem da brevidade da sua vida.
Chamava-se Salomé. Era o nome de minha mãe.
D.E.