domingo, dezembro 28, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XIV)

E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria , ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignomínia crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico. – Isto é dito por Almeida Garrett nas Viagens, cuja história decorre em Julho de 1843, em pleno período da ditadura de Cabral. Dito por Garrett e não por um seu narrador, pois há suficientes provas, ao longo de toda a narrativa, da identificação do autor com o narrador e protagonista. A crítica costuma enfatizar a complexidade da obra, os seus diferentes níveis (narrativa de viagem, novela, carta) e o hibridismo formal típico do Romantismo, mas raramente se detém nas suas marcas autobiográficas. Uma verdadeira autoficção, dizemos nós, muito antes de o termo ter sido inventado, em 1977, por Serge Doubrovsky.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XIII )

Em certa altura, no silêncio da casa, a minha mãe dizia como se se tratasse da coisa mais natural do mundo: “Lá está a costureira.” Eu aproximava o ouvido do sítio da parede que ela tinha apontado, e aí ouvia, juro que ouvia, o ruído inconfundível de uma máquina de costura, das de pedal (não existiam outras), e também, de vez em quando, um outro som característico, arrastado, o da travagem, quando a costureira leva a mão direita à roda para deter o movimento da agulha.

(JOSÉ SARAMAGO, As Pequenas Memórias, Lisboa, Editorial Caminho, 2006, p. 89.)


Ouvi-a algumas vezes na casa da minha avó, em Tomar, nas horas lentas dos serões, e também em Lisboa, num terceiro ou quarto andar da Travessa Nova de Santos, onde morei com a família até aos seis anos de idade. Chamavam-lhe a costureira, ou a costureirinha. O som vinha do interior das paredes, de detrás dos móveis ou até dos interstícios do soalho, reproduzindo na perfeição o ruído de uma máquina de costura em pleno funcionamento. O meu pai, de quem herdei, entre outras coisas, um certo pendor para a incredulidade, dizia tratar-se de um insecto que roendo o seu sustento ou vibrando as asas produziria aquele rumor semelhante ao de uma máquina de costurar. Que insecto seria, não sabia dizer, mas recusava as explicações destituídas de racionalidade.
Li hoje n´As Pequenas Memórias de José Saramago o relato de igual experiência vivida pelo escritor nos seus tempos de criança. A explicação que lhe era dada pelos adultos referia uma costureira que por não respeitar os domingos, trabalhando afincadamente nesses dias em vez de os dedicar ao culto de Deus, havia sido condenada a costurar eternamente, eternamente metida dentro das paredes das casas. Já não me lembro que justificação fabulosa me apresentavam para tão intrigante mistério, mas estou em crer não ser muito diferente da que era prescrita ao pequeno José pelos seus familiares.
Tal como Saramago, também eu não voltei a ouvir a costureirinha. Talvez o juiz condenador tenha decidido comutar-lhe a pena, libertando a triste de tão penoso fadário. Ou talvez tenhamos deixado de a ouvir apenas por causa do barulho dos aparelhos de televisão e das potentes aparelhagens de som que passaram a marcar lugar nos nossos espaços domésticos, abafando com os seus decibéis o brando murmúrio da respiração das casas. Tudo é possível.
Não me atrevo a jurar, como o nosso Nobel, mas lá que a ouvi, ouvi, a pobre costureirinha, condenada por um juiz cruel a vaguear de casa em casa, por dentro das paredes, sempre a dar ao pedal da sua máquina de costura. Pequenas memórias? Não me parece.

domingo, novembro 16, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XII )

A leitura de O Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler, leva-me de viagem para outro livro: Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, obra-prima da literatura de língua portuguesa do século dezasseis, publicado em Ferrara, Itália, no ano de 1553.
Em ambos os livros (o de Zimler apresenta-se como a transposição literária de um manuscrito da diáspora sefardita), recordamos a intolerância e as exprobações sofridas por uma comunidade laboriosa que apenas aspirava à liberdade de religião e ao respeito pelas suas ancestrais tradições.
Após o massacre de Lisboa de 1506 (a que recentemente se ergueu, junto da Igreja de S. Domingos, um belo memorial) e durante o reinado inquisitorial do Piedoso, milhares de judeus abandonaram o país com prejuízo da economia, da ciência e da cultura portuguesas. Tudo por causa da cristianíssima fé dos reis, do clero fanático e do povo ignaro.

sábado, novembro 15, 2008

SÉGOLÈNE ROYAL

Parece o descanso da guerreira, mas não é. Neste fim-de-semana, em Reims, Ségolène Royal está na luta pela liderança do Partido.
Voto nela!

domingo, novembro 02, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 15 )

Fui hoje chamado para uma reunião com o director do centro de ajuda psicológica. Pretendia ser informado, de viva voz, sobre a evolução de cada um dos casos que me foram entregues desde a mudança da população para a nova aldeia. Expliquei-lhe que um deles me inspirava particulares cuidados, o do homem que tinha recusado trasladar os restos mortais da sua mulher, referindo-me a ele desta maneira e não pelo nome próprio por me parecer que assim seria identificado com maior facilidade pelo meu superior hierárquico. Logo percebi que o motivo apresentado para a reunião não passava de um mero expediente para chegar a outras indagações. Ouviu quase distraidamente a minha exposição, fazendo correr por entre os dedos um caneta esferográfica, supostamente destinada a tomar notas, enquanto ia olhando os longes da paisagem através da janela que se abria à esquerda da sua secretária.
Devo dizer que nunca simpatizei com este homem. No dia em que me apresentei no centro, questionou-me sobre aspectos da minha vida particular de forma tão despropositada e abusiva que desde logo passei a evitá-lo, só o contactando por rigoroso imperativo de serviço. A pergunta mais extraordinária que então me fez, acabado de chegar e não me conhecendo de nenhum lado, foi se eu era solteiro como indicavam os meus documentos de identificação ou se, como era comum entre muitos jovens, vivia em união de facto com alguém. Confesso que gaguejei, tal a surpresa. Dei uma resposta atabalhoada, inconclusiva, incomodado por me ver constrangido a contar a minha vida a uma pessoa com quem não tinha qualquer intimidade e que se limitava a ser o director do serviço onde acabava de ser colocado.
No prosseguimento da reunião, sempre pouco interessado naquilo que eu lhe ia dizendo, rapidamente se encaminhou para as perguntas que realmente pretendia fazer-me: o que achara eu do jantar oferecido pelo Presidente da Câmara, por que razão me ausentara ainda o discurso não havia terminado, se alguma coisa me parecera mal na organização do referido jantar. Sendo o mandatário da candidatura, disse-me, era de bom grado que registaria as opiniões e críticas dos eleitores.
Falei-lhe da minha fraca disposição para discursos longos, do desinteresse que sentia pela política e do facto de não ser eleitor no círculo do concelho. Isso explicava a minha atitude. Dei-lhe, nestes aspectos, uma resposta franca, mas escondi a revolta sentida perante o arrazoado demagógico do Presidente da Câmara. Indignara-me aquela disposição para iludir com as palavras, o oportunismo das homenagens ao pobre morador falecido, a hipocrisia das alusões aos pastores espoliados das suas terras, as referências aos dias felizes do povo na nova aldeia – como se a felicidade se construísse pelo apagamento da memória e das raízes, pelo internamento de toda a população numa geometria de ruas limpas e paredes brancas.
Foi então, enquanto alimentava estes pensamentos, que ele lançou sobre mim uma frechada súbita:
“Diz-se por aí que costuma frequentar um bar de
gays do outro lado da fronteira.”
A minha perplexidade perante o arrojo e o descaramento da observação não poderia ter sido maior. Nos primeiros instantes, só a indignação dos meus olhos foi capaz de falar. Aquele homem conhecia os lugares que eu frequentava, talvez até as minhas relações pessoais, parecendo-lhe natural inquirir sobre a matéria da minha vida privada e convidar-me a prestar-lhe contas do que fazia para lá das horas de trabalho. Ele deve ter sentido o efeito causado pela sua observação, pois o desenho da boca, onde era visível a mais impudente das determinações, cedeu o lugar a um trejeito sombrio e ameaçador que não podia deixar de ser levado em conta. Confirmei em absoluto, pela forma como procedeu comigo, aquilo que dele se dizia. Tendo sido sempre um funcionário zeloso do regime deposto, logo se adaptou às novas condições criadas pela democracia, com inscrição partidária e prossecução dos seus propósitos carreiristas. Era portanto uma mentalidade do passado, um espírito de inquisidor disfarçando-se sob o cartão dum partido e o folclore das campanhas eleitorais. E foi aí que a minha cólera explodiu. Acabei por lhe dizer que não admitia insinuações e reparos sobre a minha vida privada, que tal não lhe era permitido, e que só em matéria profissional me sentia obrigado a dar-lhe satisfações. O homem deu por terminada a reunião, como se estivesse satisfeito com os resultados da mesma, dizendo-me entre dentes que se tinha limitado a avisar-me, e eu saí para o corredor, a caminho do meu gabinete, num passo lento e triste.
Daí a uma hora teria mais uma sessão com Josué. Sentei-me à mesa de trabalho a ler as notas que vinha tomando sobre o desenvolvimento do seu caso, e senti que nunca como naquele momento ele me despertava tanto interesse. Um interesse que não era afinal do domínio da profissão, onde os progressos até não existiam, mas antes fundado na humanidade daquele ser e daquela vida, nos seus merecimentos e imperfeições que não conhecia por completo, no drama de ter sido o único a deixar tudo sob as águas – elementos que faziam dele a mais singular das pessoas com que me deparara entre os povoadores da falsa terra prometida. Esperei-o com ansiedade, e rapidamente esqueci a impertinência astuciosa do director do centro.
Quando, à hora marcada, dei indicações para chamarem Josué ao meu gabinete, estava longe de imaginar o que ia acontecer.

sábado, outubro 18, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XI )

Compreende-se bem por que razão o romance Jogo da Cabra Cega, publicado em 1934, foi retirado do mercado e proibido pela censura salazarista durante cerca de trinta anos. Romance modernista, não compatível com a moral vigente e a ordem social e política estabelecida pelo ideal do corporativismo, só lhe foi autorizada uma 2ª edição no ano de 1963, quando o seu autor já se tornara uma figura proeminente da nossa vida literária.
Trata-se de um texto denso, perturbador, no qual a virtude e o vício, o bem e o mal, o amor e o ódio se assumem muitas vezes como categorias indistinguíveis. Sem Deus, ou apesar de Deus, nada mais resta ao sujeito individual, outrora uno, que a aventura da dispersão e do estilhaçamento: ser ele e o outro, e tudo ao mesmo tempo. É assim que lendo este José Régio não podemos deixar de nos lembrar de alguns textos de ficção de Mário Sá-Carneiro.
(Ilustração: reprodução do óleo sobre tela Poeta de Deus e do Diabo, de Ventura Porfírio, datado de 1958; Casa-Museu José Régio, Portalegre.)

domingo, outubro 05, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( X )

No desfecho dum romantismo brasileiro povoado de índios e cânticos nacionalistas, Castro Alves foi o poeta dos escravos, da vergonha brasileira e da consciência abolicionista. Chamaram-lhe condoreiro, de condor, ave soberba que sobreleva no seu voo os altos píncaros dos Andes.
É bom reler O navio negreiro, Vozes d´África e A cachoeira de Paulo Afonso, do melhor que se escreveu, em oitocentos, na língua portuguesa. E do lado de lá do mar!

domingo, setembro 28, 2008

OUTROS BLOGUES


Do blogue Insónia, de Henrique Fialho (www.antologiadoesquecimento.blogspot.com), retiro esta imagem de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Como deixou escrito um judicioso comentarista do mesmo blogue, isto sim, era modernidade...

sábado, setembro 20, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( IX )

Ignorante da vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio nem cultura – assim dispunha Ricardo Reis sobre o autor no prefácio aos poemas de Alberto Caeiro, poeta das sensações que teria repugnado a religião e a metafísica, descobrindo o mundo sem precisar de pensar nele.
Porém, esta personagem quase sem cultura lia o livro de Cesário Verde até lhe arderem os olhos (poema III de O Guardador de Rebanhos), sabia dos cantos literários dos pastores de Virgílio (poema XII do mesmo livro) e numa entrevista supostamente dada em Vigo criticava Junqueiro e Pascoaes e chamava idiota a Verhaeren.
O que mais se encontra nos escritos de Alberto Caeiro é pensamento puro, filosofia. Uma complexidade que não se conforma com a simplicidade e a espontaneidade anunciadas. Paradoxos fascinantes do drama em gente pessoano.

domingo, setembro 07, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VIII )

Marguerite Yourcenar confessa ter saboreado em Anna, Soror… , pela primeira vez, o supremo privilégio do romancista, o de se perder inteiramente nas suas personagens, ou de se deixar possuir por elas.
Vinte e dois anos tinha a escritora quando viveu a paixão dos irmãos Anna e Miguel. Como pano de fundo, uma Nápoles da Contra-Reforma povoada de Sextas-Feiras Santas e de Cristos de gesso, um ambiente de penumbra e drama digno dos pincéis de Caravaggio.
Discorrendo sobre o tema do incesto, diz-nos a autora no seu posfácio a Anna, Soror…: (…) o facto de se pertencer a dois clãs inimigos, como Romeu e Julieta, raramente é sentido nas nossas civilizações como um obstáculo intransponível; o adultério banalizado perdeu, além disso, muito do seu prestígio graças à facilidade do divórcio; o amor entre duas pessoas do mesmo sexo saiu em parte da clandestinidade. Só o incesto continua a ser inconfessável e quase impossível de provar, mesmo onde suspeitamos que exista. É contra as falésias mais abruptas que mais violentamente se lança a vaga.
É isso. A vaga só é branda nas planuras da praia. Não tolera o desafio dos rochedos nem as escarpas dos sentimentos.

quinta-feira, agosto 28, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VII )

Há quem não lhe aprecie o estilo, os temas, a atitude de polemista que não fugia à luta e nunca ia por onde o mandavam ir. Amado por uns, detestado por outros, foi professor durante uma vida numa remota cidade do Alto Alentejo. Dramaturgo, poeta, ensaísta e principal animador da histórica revista “presença”, é talvez como romancista que menos é conhecido.
Leio agora o ciclo romanesco A Velha Casa – um misto de ficção e autobiografia que o autor considerava a obra capital da sua produção literária. Vou no terceiro livro – Os Avisos do Destino – e passo por episódios já encontrados em Confissão dum Homem Religioso ou nas Páginas do Diário Íntimo, escritos autobiográficos, como se o imaginário não fizesse sentido sem a luz do real, como se à vida não bastasse vivê-la e sempre se tornasse necessário dar-lhe visos de sonho. Este homem sonhou de mais e viveu de menos. Ou, pensando melhor, talvez tenha vivido na plenitude, se é verdade que, como disse o Poeta, o sonho comanda a vida.
Ficou conhecido por José Régio, um pseudónimo tirado do seu nome José Maria dos Reis Pereira. E nem aqui se distanciou de si mesmo.

segunda-feira, agosto 18, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VI )

Encontramos em Madame Bovary um episódio impressionante, de uma obscenidade excessiva, que atira o adultério de Emma e a perfídia dos seus amantes para o plano singelo das coisas comuns. Trata-se da operação ao pé boto do infeliz Hippolyte, um “acto médico” de Charles Bovary que acarretou ao paciente a consequência natural de uma gangrena: a amputação da perna.
Dificilmente se encontrará em outro romance, como neste de Gustave Flaubert, um libelo tão impiedoso contra os charlatães da medicina.
Dir-se-á que se estava no século XIX, tempo de ideais e filosofias mas de limitado progresso das ciências médicas. É verdade. De resto, não faltam casos de convicções pseudocientíficas na ficção literária de Oitocentos. Veja-se, por exemplo, O Primo Basílio e a morte de Luísa, a “febre cerebral” de que foi acometida, sendo-lhe rapada toda a cabeça para mais eficaz resultado das compressas húmidas com que pretendiam debelar-lhe o mal. Veja-se o uso indiscriminado das flebotomias, a crença nos resultados dos sinapismos e das ventosas, as garrafas de medicamentos preparadas por génios de botica do tipo Eusébio Macário.
A negligência médica de Charles Bovary foi instigada pela inanidade científica do farmacêutico Homais. Ainda hoje os grandes erros médicos resultam, na maioria dos casos, de uma conjugação de equívocos entre a medicina e a farmacêutica – uma indústria poderosa que delapida milhões em estratégias de marketing perante a postura reverencial de investigadores e instituições universitárias. O corrupio de delegados de propaganda médica à porta dos consultórios e os congressos organizados em hotéis de luxo configuram uma medicina submetida à lógica do lucro, onde conta mais o dinheiro que a felicidade das pessoas. E não devia ser assim.

domingo, agosto 17, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( V )

Bela tarde de sábado passada com o Fervor de Buenos Aires de braço dado com o grande poeta argentino. Deu para lembrar Bernardo Soares e as suas viagens "com a alma" (por oposição a viajar "com o corpo"): Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente de quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma.
Leio em Borges: Las Calles de Buenos Aires / ya son mi entraña. Fico com a cidade dentro de mim. E penso: como ainda há gente que insiste em partir de férias!

sábado, agosto 09, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 14 )

De um dia para o outro as paredes da aldeia encheram-se de cartazes com as fotografias dos líderes políticos, enquanto o chão se coalhava de coloridos rectângulos de papel, de diversos tamanhos, mostrando os programas dos partidos e as listas de candidatura. Largas faixas de pano atravessavam as ruas à altura dos beirais dos telhados, suspensas pelas extremidades nos candeeiros de iluminação pública, deixando cair sobre os moradores relâmpagos de frases curtas e incisivas, apelos ao voto e ínvias promessas de felicidade. Era a máquina da propaganda eleitoral em toda a sua força.
Logo nos primeiros dias da campanha, o Presidente da Câmara veio à aldeia em demanda de votos para um novo mandato. Trouxe consigo, para recrear o povo, um conhecido grupo coral de mineiros que desfilou pelo largo principal com a dolência dos seus cantares, os homens movendo-se muito lentamente, de braços dados, com os fatos de ganga, os capacetes escuros e as lanternas, os lenços vermelhos atados ao pescoço e estendidos em triângulo sobre a largura dos ombros. Entre a população, para que não houvesse dúvidas de quem organizara o evento, distribuíam-se esferográficas, sacos de plástico e outros brindes gravados com o nome e a fotografia do candidato. À noite, na sociedade recreativa, foi oferecido um jantar aos eleitores, tendo discursado o Presidente da Junta, um representante dos donos do empreendimento e, por último, muito inflamado, o Presidente da Câmara.
Foi enquanto este fazia a sua alocução que se soube do falecimento de Daniel. Acontecera durante a tarde, mas só à noite, quando entraram em casa para lhe levar o jantar, deram com o corpo estendido sobre a cama, como se estivesse a dormir, o pescoço e os membros superiores já tomados pela rigidez post mortem. Entre os amigos e vizinhos que participavam do repasto, a notícia foi passando de mesa em mesa, gerando-se alguma perturbação e natural desinteresse pelas palavras do orador. Este, estranhando o comportamento do auditório, fez uma pausa, ao mesmo tempo que sorvia uns golos de água, procurando saber junto de um assessor qual o motivo daquele rumor que percorria a sala. E tendo sido informado do sucedido, logo abriu um parêntesis na oratória para se associar ao pesar da aldeia pelo falecimento daquele seu filho, o que foi feito com grande eloquência e aparente emoção, embora não conhecesse o defunto de nenhum lado e nem sequer soubesse o seu nome. Assim, desta forma e por estas singulares razões, é que Daniel recebeu homenagens fúnebres, do alto de um palanque, no dia da sua morte. Foi mais uma vítima da subida das águas.
Entretanto, havia um problema que preocupava os donos do empreendimento e que o Presidente da Câmara pretendia resolver como grande trunfo eleitoral: era o caso daquele estranho povo de pastores que fora desapossado das suas terras para nelas se edificar a nova aldeia. O conflito com os habitantes de Novo Vilarinho, ocupantes forçados dos seus ancestrais lugares de pastoreio, tinha ficado em suspenso depois da intervenção da Guarda e de algum trabalho negocial feito com os líderes da revolta. A paz, no entanto, não parecia segura. Os pastores continuavam a reclamar um território alternativo para a subsistência dos seus rebanhos, pretensão que se revelava bem difícil de satisfazer, dado o valor económico entretanto adquirido pelas terras com as infra-estruturas de regadio que a barragem permitira criar.
As exigências dos pastores eram apoiadas por algumas forças políticas da oposição e pelas organizações ambientalistas, correntes de opinião que os donos do empreendimento se tinham habituado a não menosprezar no complexo processo que precedera a construção da barragem e o enchimento da albufeira. Agora, porém, que a obra tinha atingido os seus objectivos primários, que o grande lago era uma realidade e as populações deslocadas se acomodavam às suas novas casas, já eles pareciam não recear qualquer sucesso que lhes embaraçasse os planos, os quais consistiam na rápida expansão das áreas irrigadas e no incremento da produção de electricidade para todo o país e até para o exterior. Portanto, bem poderiam clamar no deserto os descrentes da sua política de progresso. Tinham aceitado salvar uma grande quantidade de oliveiras centenárias e uns poucos monumentos megalíticos; deixaram sob as águas as pedras escuras do milenar castelo, mas puseram a salvo a igreja matriz e as campas do cemitério; os deslocados haviam sido alojados numa aldeia nova, dispondo de locais de culto religioso, de espaços de convívio, de médicos e de apoio psicológico; ninguém tinha ficado mal e a verdade é que só praticamente os velhos, uma espécie em vias de extinção, demonstravam alguma resistência em se adaptarem à nova realidade. Havia então que resolver, como se de um pequeno detalhe se tratasse, a questão dos pastores e dos seus rebanhos, ou, melhor dizendo, dar a ideia de resolver, pois entregar a uma horda de queijeiros e produtores de lã terras com aptidão para uma agricultura de alto rendimento, era solução que não ousavam admitir.
Conhecedor das estratégias do empreendimento, apelou o Presidente da Câmara à cooperação entre as diferentes culturas. E falou de formação profissional, de reconversão para uma agricultura moderna, chamando a atenção para aquela força de trabalho – a dos pastores – que, devidamente formada, poderia responder aos desafios lançados pelos novos investidores, muitos deles vindos do país vizinho, gente com ideias avançadas, com uma visão apurada da economia e dos mais exigentes modelos empresariais. De todos estes juízos se ia compondo a intervenção do autarca, seguro de que não faltariam as ajudas e os fundos comunitários para obrar no seu concelho a revolução tranquila com que sonhava. E as suas palavras pareciam agradar, tanto quanto era possível avaliar pelos aplausos que ia recebendo.
Apenas um homem, um jovem psicólogo em serviço na aldeia, se levantou do seu lugar, como que revoltado, quando o discurso presidencial atingia o seu clímax. Saiu intempestivamente da sala, tornando-se assunto de muitas conversas naquela noite e nos dias que se seguiram.

domingo, julho 27, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( IV )

Afinal, por aquilo que tenho ouvido, O Crime do Padre Amaro é, muito mais que o romance realista de um padre sedutor e de uma infeliz donzela seduzida, uma prodigiosa história de amor a lo divino, parente afastado, digo eu, da poesia místico-erótica de San Juan de la Cruz e de algumas novelas religiosas de Sóror Violante do Céu e de Leonarda Gil da Gama.
Lembremo-nos de que Amélia, à noite, quando recolhia ao seu quarto exaltada pelos serões familiares onde Amaro pontificava, se punha a ler os Cânticos a Jesus, um livrinho devoto em que o Filho de Deus é invocado segundo um erotismo de alucinação: Oh! Vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quere-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! Queima-me! Vem! Esmaga-me! Possui-me! (Cap. VI).
Por outro lado, no Capítulo XVIII é Amaro que erotiza a sacra representação de Nossa Senhora, colocando sobre os ombros de Amélia a capa de cetim azul, bordada de estrelas, que devia adornar a imagem da Virgem: Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhora – diz.
Tudo requebros que nos chegam dos Santos Evangelhos: Maria Madalena lavando os pés do Senhor, secando-os com os seus cabelos perfumados; a Samaritana dando de beber (ou dando-se a beber) a Jesus junto do poço de Jacob.
Hoje, felizmente, são mais terrenos entre os ministros de Deus os inexoráveis apelos da carne. Já dizia o Padre-Mestre a Amaro no citado Capítulo XVIII: Homem! É o que a gente leva de melhor deste mundo!

D.E.

domingo, junho 22, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( III )

António Malhadinhas, protagonista pícaro da conhecida novela de Aquilino Ribeiro, raptou a prima Brízida para que não a tomassem os fidalgotes que lhe andavam a namorar as carnes: o Tenente da Cruz e o abade de Britiande.
Levou-a à força pelos alcantis das Terras do Demo, fazendo-a passar de donzela a dona num cardenho lúgubre perdido nos píncaros das serranias.
Quando o progenitor da jovem, seu tio e segundo pai, lhe saltou ao caminho em reparação de tão grave afronta, o pérfido Malhadas apontou-lhe o bacamarte ao peito e disse:
- Tenha-se, senão morre!
Assim se pagavam naquele Portugal de antanho os desvelos de tio e pai adoptivo. Porque António Malhadinhas nunca foi boa rês. Tinha uma língua afiada e uma faca ágil com que não se coibia de fazer estrago no coração ou nas tripas de quem contra ele levantasse contenda.
E, no entanto, a vida deste homem poderia ter sido diferente se um pouco antes do desaforado rapto se tivesse deixado ir na corrente de felicidade que lhe augurava a doce e terna Rita. Ter-se-ia talvez convertido num agricultor sisudo, cioso do chão de onde lhe manava o sustento, e não no renitente recoveiro sempre disposto a correr os sendeiros de Barrelas a Aveiro mordido pela febre da veniaga, em busca do lucro rápido nas transacções de sal, presuntos e azeite.
Por estas razões dá que pensar O Malhadinhas. Como seriam as nossas vidas se não tivéssemos seguido, em determinado momento, a voz desse raptor que temos dentro de nós? E nos tivéssemos deixado ir, simplesmente, na doce promessa dos olhos ternos que rejeitámos? Estaríamos melhor, estaríamos pior? Seríamos de certeza diferentes.
D.E.

quarta-feira, junho 04, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( II )

Quando Ruben A. escreveu “ A Torre da Barbela”, o cavaleiro virgem de Santa Comba ainda não frequentava o convívio crepuscular dos primos no Jardim dos Buxos da mansão senhorial. A Torre, como se sabe, estava acima das categorias de tempo e espaço, um não-lugar que era todos os lugares ao mesmo tempo, um vórtice de séculos onde os mortos estavam vivos e os vivos estavam mortos.
Em baixo corria o Lima, o lendário Letes, o rio do esquecimento dos Calaicos.
Madeleine chegou de Paris para umas férias com os primos Barbelas, uma estirpe decadente, apesar de tudo uns furos acima da parentela dos Beringelas, rudes senhores de Entre Douro e Minho envilecidos no trabalho mecânico das conservas de enguias e trutas assalmonadas.
Se o cavaleiro virgem de Santa Comba tivesse encontrado Madeleine, ter-se-ia apaixonado por ela como aconteceu com o cavaleiro autêntico da história. Era bem conhecida a sua atracção por senhoras parisienses, assim como a facilidade com que as convidava a passar férias na sua quinta e vinhedos do viçoso Dão.
Madeleine foi um raio de sol que rompeu o espesso nevoeiro dos domínios senhoriais da Torre da Barbela. É uma personagem excitante, alegre e desinibida, muito acima dos visos trágicos de Izabella, da postura belicosa de Dom Raymundo, da carnalidade do Abade da Moutosa ou da bastardia risível do Menino Sancho.
Madeleine estava morta e bem morta, e nisso era completamente diferente do Dr. Mirinho, um primo tecnocrata que, estando morto, até parecia vivo.
É por parecerem vivos que os tecnocratas são perigosos. O cavaleiro da história montava o cavalo Vilancete e dava a guante às garras do seu falcão Abelardo. Hoje, na nossa Torre, tecnocratas aparentemente vivos montam os velozes cavalos do poder e dão-se igualmente a artes de falcoaria.
Mortos, autenticamente mortos, seriam ao menos suportáveis.
D.E.

domingo, junho 01, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( I )

“Clepsidra” de Camilo Pessanha – parece que o título foi inspiração de um verso do poema “L´Horloge” de Charles Baudelaire:

“Le gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide.”

Lembrei-me do relógio – deus sinistro, aterrador, impassível –, metonímia do tempo fugaz e de imagens que se escoam nas retinas frágeis, a propósito do romance “As Horas Nuas”, de Lygia Fagundes Telles, livro que li mais uma vez no passado sábado, a horas vestidas de futebol, na comunidade de leitores da Biblioteca Municipal do Seixal.
Rosa Ambrósio, a diva, padecia o flagelo da idade nos cones de água do contador do tempo; Rahul, um felino de patas almofadadas que atravessara a vertigem das eras, derramava nos sofás o seu corpo de sombra e luz; Ananta continuava desaparecida; Cordélia amava; Dionísia sofria. Dos outros não me apetece falar, o Gregório que me desculpe.
Como ando a participar no boicote ingénuo às gasolineiras, fui e vim na boleia de uma carruagem que não se perturba com a subida dos preços dos combustíveis.
Sim, julgo entender a inscrição no portal de “Clepsidra”:

“Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme…”

E peixe, vai haver peixe para as sardinhadas de Junho?
D.E.

quarta-feira, abril 16, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (13)

Naquela manhã, Josué saiu cedo de casa. Desde o dia da última sessão de terapia que não se sentia bem – uma dor de cabeça que lhe moía as têmporas e não dava sinais de regredir, apesar dos comprimidos que andava a tomar há mais de uma semana. Fechou a porta, embrulhou a chave no lenço como era seu hábito, e seguiu pelas ruas, um pouco ao acaso, sentindo que o espaço aberto e o ar fresco do dia lhe davam uma dose suplementar de resistência, uma outra força para enfrentar o sofrimento.
Atravessou o largo, passou rente à sociedade recreativa, tomando a rua que vai até ao terreiro da igreja e ao cemitério. Ali, sentou-se num degrau do cruzeiro a olhar a fachada do templo com o seu alpendre de telha-vã e a sua torre sineira. A manhã era uma várzea de luz e o voo dos pássaros riscava nos ares prenúncios de Primavera. Atrás, para lá do bloco escuro do museu, entrava pelos campos uma língua de água cinzenta e grossa, a superfície levemente ondulada, as pequenas ondas desfazendo-se numa babujem frouxa de encontro às pedras da margem. E pensou: Por pouco a água não lambia os muros do cemitério. Josué reparou nos ciprestes projectados na direcção do céu, e, por um instante, veio-lhe à memória o passamento de Jacob, o primeiro dos companheiros a partir depois da subida das águas. Repeliu a dolorosa lembrança e, levantando-se, recomeçou a andar, esboçando uma saudação fugaz para um grupo de forasteiros que atravessava o terreiro na direcção do museu.
Àquela hora, poucos moradores andavam pelas ruas, apenas se viam carros com pessoas de fora, gente que vinha de passeio ver a aldeia e os seus habitantes com o mesmo sentido de curiosidade de quem se dispõe a observar algo de inteiramente novo: uma ilha nascida no oceano por um qualquer fenómeno de origem vulcânica, uma cidade levantada depois de um cataclismo sísmico. E aprendiam, no livro aberto do museu, os nomes dos monumentos que para sempre tinham ficado sob as águas do lago: os menires e as antas, o castelo, as artes da pesca fluvial, os barcos do rio, as chaminés e os telhados das casas, tudo o que era a vida e a alma do povo. Os forasteiros, reparou, traziam máquinas fotográficas e câmaras de vídeo, riam e falavam alto, gravavam, contra os desvios da memória, as imagens felizes de que são feitas as viagens.
Josué deixou o terreiro da igreja e voltou à rua, percorrendo-a na direcção contrária, no sentido do centro da aldeia. Ao chegar junto dos muros da pequena praça de touros, encontrou Daniel, ensimesmado, alheio a tudo o que o rodeava, como se já não fizesse parte daquele espaço e daquele tempo. Daniel, que sempre fora forte e soubera aceitar com estoicismo a infeliz condição de deslocado, tinha sofrido muito com a loucura de Jonas, seu companheiro de cavaco e pescarias. Começou a receber apoio psicológico no centro social do empreendimento, mas logo deixou de ir às sessões, ainda que muito instado para nelas comparecer. Vivia sozinho, e eram voluntários de uma qualquer instituição de apoio social que diariamente lhe vinham trazer as refeições e fazer os arranjos da casa. Daniel, que em tempos fora o mais querido de todos os camaradas, que andara com eles pelos caminhos do sonho, enfrentando provações que sempre soubera ultrapassar com dignidade, era naquele momento uma ruína de homem que inspirava a mais dolorosa das comiserações. Josué aproximou-se dele e abraçou-o. Colhia naquele transe todo o sentido de um adeus definitivo, os seus braços sobre os ombros murchos do companheiro, puxando-o para si como se quisesse metê-lo no coração, as palavras que não era capaz de dizer, os olhos turvos de febre ou de choro, e uma vontade de se deixar ficar ali no indizível transporte daquele abraço. Despedia-se, mas não sabia qual dos dois ia partir.
A manhã ia já adiantada. Na rua principal, a caravana automóvel de um partido político estendia nos ares, a partir de altifalantes roufenhos amarrados ao tejadilho de um carro, uma corda de palavras de ordem e cantilenas de esperança. Só então Josué percebeu que tinha começado a campanha eleitoral.
D.E.

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (12)


Ester veio hoje ao meu gabinete pela terceira vez. É difícil não reparar nos seus olhos de uma claridade quase líquida, ainda belos, surpreendentes numa mulher já tão avançada na carreira dos anos. Admiro-lhe a forma elegante como se senta, a saia cinzenta de fino corte, a blusa vistosa sob o casaco de malha onde radia a fortuita luminescência de uns botões de madrepérola.
De todos os deslocados que foram encaminhados para a ajuda psicológica, é este o caso que menos me preocupa. Às vezes, durante a conversa que mantenho com ela, consegue ser jovial. Há momentos, porém, em que se lhe turba o brilho dos olhos e as rugas do rosto, em que quase não se repara, conferem-lhe uma inesperada expressão de melancolia. É nestes momentos que sinto tocar a zona escura da sua alma.
Escuto-a. Conta-me coisas antigas dos seus tempos de moça, quando era a mulher mais formosa da aldeia e não havia homem que, perante si, ousasse ficar indiferente. Tempos difíceis para quem, como ela, trabalhava nos campos. Uns emigravam, outros, para não se afundarem na miséria, desenvolviam as mais variadas estratégias de sobrevivência. Ester saiu de casa dos pais e foi viver por conta de um poderoso senhor da cidade, um homem que mandava nas polícias de todo o distrito, guardador da ordem pública e dos silentes rebanhos de gente.
Houve um período, porém, em que alastraram as reivindicações dos trabalhadores. No surto das greves, os homens e as mulheres ficavam em casa sem sair para os campos, as sementeiras a perderem-se pela renúncia dos braços. Era então que a Guarda procurava os desertores nos lugarejos ou nos tugúrios isolados onde viviam, metia-os em camionetas de caixa aberta à força do poder das espingardas e entregava-os nas terras dos senhores que ansiosamente esperavam pelos seus braços de aluguer. Ester acompanhou tudo da gaiola doirada onde vivia, serva e rainha na casa do poderoso senhor, e quando saiu a ordem para a detenção dos cabecilhas da revolta, correu a avisá-los, para que não os alcançasse o braço da lei. Salvou os perseguidos, mas perdeu-se a ela.
Ao longo das sessões, venho notando que evita falar dos seus problemas, razão por que vem, semanalmente, ao meu gabinete. Pergunto-lhe o que pensa da nova aldeia, do canal de televisão e dos serviços de apoio do empreendimento, tento pegar no infeliz episódio da destruição do televisor, mas ela torneia as minhas questões. Responde-me evasivamente e, quando menos se espera, já se afunda no pélago das memórias. Memórias de água, diz-me em certo momento, e eu sinto que não posso insistir mais, que tenho de ouvir as suas recordações até ao último minuto da sessão, e que essa será a única forma de a poder ajudar.
Fala-me de Josué, de Jonas, de Daniel, do infeliz Jacob que se finou na incandescência de uma tarde de Verão, à hora em que se fazia sentir, em toda a plenitude, o rescendor único das estevas do campo. Faz-me recuar aos tempos em que eram todos jovens, antes, muito antes de lhes submergirem as vidas e os afectos numa massa de água sustida por um paredão de cimento com noventa metros de altura. Fala-me de Salomé, a que repousa no leito do lago por o marido ter recusado a trasladação dos seus restos mortais. Salomé, uma mulher nervosa e beata que fez um filho fora do casamento e que saiu da aldeia por não ter sido capaz de enfrentar a reprovação geral dos conterrâneos. Voltou mais tarde, sem a criança, a qual, segundo ela, teria morrido. Verdade? Mentira? Nunca se soube ao certo. Salomé morreria uns anos mais tarde, ainda jovem, de um mal na barriga.
Ester continua a falar até que termine o tempo que lhe está reservado. Eu já conhecia o episódio da recusa da trasladação: o que foi seu marido, Josué, vem regularmente ao gabinete de ajuda psicológica. Só não sabia o nome da mulher, as circunstâncias da sua vida conjugal, nem da brevidade da sua vida.
Chamava-se Salomé. Era o nome de minha mãe.
D.E.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (11)

Há três noites que Josué tem o mesmo sonho. Um sonho mais entre os muitos que costumam assediá-lo e com os quais se habituou a discernir o sentido obscuro e profundo das premonições.
Vai num barco de passageiros que navega as águas de um rio sob um céu azul por onde correm nuvens grossas e claras, a luz do sol atravessando-as como se fossem lentes, caindo em fogo sobre o dorso da terra. O rio às vezes é largo até não se verem as margens (um lago?); noutras, estreita-se tanto que quase não dá para continuar. Josué não se lembra da cara de nenhum dos companheiros de viagem, mas tem bem presente o reflexo de prata dos peixes enfrentando o ímpeto da corrente carregada de barro e limos. Não sabe para onde segue o barco, que destino demanda o inverosímil arrais.
A certa altura, Jonas aparece-lhe na margem segurando a cana de pesca, abrigado do sol sob o frágil rícino. Acena-lhe do barco, mas ele não o vê. Parece uma sombra. Apenas o fio de nylon lançado sobre o desassossego dos cardumes refulge à luz poderosa do dia.
Quando as margens se aproximam, vêem-se esteiros que se metem pelo corpo da terra, serpenteando entre montes, brumosos canais por onde o barco nunca se aventuraria a singrar.
À entrada de uma dessas línguas de água surge a figura de Ester, ainda jovem, debruçada numa espécie de varanda sobre a superfície do rio ou do lago, vestindo umas calças justas, os cabelos molhados como se tivesse acabado de sair do banho, os seios espetados sob a camisa leve e transparente, a pele muito branca. Ester também não responde ao aceno que ele lhe dirige, e, no entanto, não é um corpo de sombra como Jonas. Talvez seja ele, afinal, a verdadeira sombra. Por isso, por mais que procure chamar a atenção dos amigos que encontra, nunca o poderão atender os que estão do outro lado do sonho. Mas dá consigo a falar com Jacob, entretanto saído não sabe de onde, roxo e estropiado tal como ficou no transe da sua morte por electrocussão, a língua inchada saindo-lhe pela fenda da boca, os dedos negros como paus de carvão, os olhos baços, os cabelos em desalinho. Fala com ele, um mesmo código de linguagem fluindo entre ambos, um lento diálogo de sombras.

Josué está sentado no gabinete do psicólogo no centro social do empreendimento. Conta-lhe o sonho. O homem, ainda jovem, escuta-o com atenção. Depois de várias sessões de terapia, vencida a desconfiança inicial, sente-se agora à vontade com o terapeuta que lhe destinaram. É uma criatura simpática, de falas e modos delicados que, sem dúvida, procura ajudá-lo. Repara-lhe nas unhas das mãos, bem cuidadas, onde fulge o vago brilho de uma película de verniz. Tem ademanes curiosos, inusitados num homem, mas os olhos, os lábios e o formato do rosto são-lhe estranhamente familiares. Parece conhecê-lo há muito tempo.

No cabo do sonho Josué vê chegar Salomé, muito decaída, tal como era dias antes da sua morte. Junta-se a si e a Jacob e conversam os três como se não houvesse entre eles diferença de estado ou condição. Já então tinha desembarcado não sabe bem em que cais. Na margem do rio ou do lago desaparecera há muito a figura de Ester.

A sessão de terapia chega ao fim. Agora é o psicólogo que fala:
“Os sonhos têm janelas de onde é possível ver a realidade.”
E acrescenta:
“Sonho tantas vezes com a minha mãe, de quem mal me lembro, que é como se ela nunca me tivesse deixado.”
Josué recebeu o cartão com a data e a hora da sessão seguinte, guardando-o na frágil carteira de plástico. Saiu para a luz da manhã que desabava sobre a geometria das ruas. Doía-lhe a cabeça.
D.E.