quinta-feira, agosto 02, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 3 )

Eram dezenas ou centenas de rebanhos conduzidos por pastores assombrosamente desnutridos, as mãos escuras arrimadas aos cajados, seguidos de matilhas de cães que afrontavam a luz do dia com a impertinência dos seus ladridos. Meteram-se pelo asfalto das ruas como se pisassem a erva tenra de um prado, dispostos a saciar uma fome bíblica.
Os moradores, ainda mal refeitos dos incidentes da mudança, viram chegar aquela vaga de lã que infundia respeito e temor. Ester, que estava sentada na soleira da porta, saltou para dentro de casa e assistiu a tudo da janela do quarto, por detrás dos vidros, persignando-se nervosamente como quem esconjura um mal ou pede o auxílio divino. Igual refúgio procuraram Jonas, Daniel e Ruben, cada qual em sua casa, tapando os ouvidos com as mãos ante o balido ensurdecedor que trespassava os ares.
Homens e animais, tomados de um desígnio aparentemente inexplicável, espalharam-se como azougue por todos os espaços da aldeia. Ocuparam as ruas, o jardim e o largo do mercado, rodearam a igreja, o salão paroquial e o edifício da sociedade recreativa.
Os terrenos baldios onde os donos do empreendimento tinham decidido erguer a nova aldeia, eram fruídos há muito tempo, em regime comunitário, por aquele estranho povo de pastores. Isso aconteceu no decurso de várias gerações. Quantas, ninguém sabia ao certo, mas não teriam sido tantas como as catorze que na história do povo de Deus se sucederam de Abraão a David, ou, em igual número, as que tiveram lugar de David até ao exílio de Babilónia. De qualquer forma, permaneceram ali os pastores por um tempo suficientemente longo e continuado para merecerem que se lhes fosse outorgada, por usucapião ou qualquer outra figura de direito, a posse legítima das terras de pastoreio.
Disse quem estava ao corrente do assunto que, nesta matéria, os donos do empreendimento haviam falhado rotundamente. Tão preocupados andavam com os deslocados de Vilarinho do Rio que desprezaram os direitos adquiridos por aquela gente escura, de pele mordida pelos sóis inclementes, arrastando permanentemente atrás de si ovelhas de úberes túmidos, vivendo de leite e queijo como se não houvesse outros alimentos à face da terra. O resultado estava agora à vista: a ocupação da aldeia pelo povo escorraçado, decidido a fazer valer, no calor da luta, os seus ancestrais direitos.
A Guarda foi chamada pelos donos do empreendimento para restabelecer na plenitude a ordem vacilante. Perante o argumento da força, recuaram os despojados para fora do perímetro da aldeia, mas aí ficaram, sobre a linha divisória entre os dois mundos, vigiando na noite que crescia os movimentos dos moradores. Quando, pela madrugada, se deu a retirada da força policial e as gentes de Novo Vilarinho se dispuseram a demandar o sono, choveu sobre as casas e as ruas uma saraivada de pedras como nunca se vira, até parecia que as mesmas eram arremessadas por sofisticadas máquinas de guerra e não por modestas fundas de pobres guardadores de gado.
O assédio dos pastores não cessou ao longo dos dias que se seguiram. Num crescendo da revolta, encheram as paredes das casas de severas inscrições e palavras de ordem, exigindo a entrega de uma área de pastoreio igual à que fora objecto de espoliação. Depois, foram mais longe: começaram a deixar as ovelhas doentes, com a vida já por um fio, à porta de casa dos habitantes; vazavam grandes quantidades de leite azedo nos locais públicos por eles frequentados; e sujavam os bancos do jardim de pestilentos excrementos de animais. Quando muito bem calhava, voavam grossas pedras de encontro aos telhados das casas.
Tudo isto acontecia de noite, quando a população se rendia ao sono. A aldeia acordava sobressaltada em cada manhã, descobrindo a face de um terror que crescia como uma árvore medonha diante dos olhos aflitos de todos os habitantes. Tinham vindo eles do deserto das águas para aquela terra prometida e, afinal, sem que nada tivessem feito para isso, deparavam-se com tão grandes e injustas tribulações.
A Guarda não tinha mão na fúria dos pastores. Daí que, entre os homens da aldeia, se tenha começado a falar de retaliação. Ninguém sabia como surgira tão imprevisto vocábulo em bocas habituadas a pronunciar palavras dóceis, palavras que não feriam, como as que usavam para chamar os filhos ou nomear as aves que voavam no céu. A verdade é que não se oferece um peixe a quem dá uma serpente. Ao mal só se pode responder com o mal, uma outra forma de exprimir a conhecida máxima: olho por olho, dente por dente; o oposto de se dizer: se te baterem numa face, oferece a outra para que nela te façam o mesmo.
Foi assim que, numa noite, um grupo dos mais jovens homens da aldeia, ou, melhor dizendo, dos menos velhos, pois o que de mais havia entre a população era gente adiantada na roda dos anos, muitos deles já com os pés para a cova, ainda por cima de ânimos abalados pela mudança imposta nas suas vidas, um grupo de homens, armado de facas de mato e provido de bolas de carne envenenadas, afoitou-se pelo território do estranho povo. Com a carne envenenada eliminaram os sabujos, e com as facas degolaram tantas ovelhas quantas puderam, até os rebanhos enlouquecidos pelo cheiro do sangue desatarem num clamoroso coro de balidos que correu os montes e despertou os pastores.
Só então os expedicionários regressaram a casa, onde foram recebidos com as manifestações de apreço que se prestam aos heróis. A partir daquela noite, no tempo que se seguiu à breve euforia das gentes da aldeia e ao adivinhado desânimo dos pastores, uma espécie de perturbação nos mais elementares princípios do entendimento impedia que se distinguisse, com claridade, onde estava a razão. Se do lado dos infelizes deslocados acolhidos nas novas casas naqueles terrenos maninhos, se do lado dos pobres pastores alijados das suas terras pela fria gestão dos donos do empreendimento. À medida que crescia o conflito de interesses entre os vizinhos, olhava-se para uns e para outros, tomados de um ódio profundo e recíproco, e não se conseguia perceber quem eram as vítimas e os algozes.

D.E.

1 comentário:

João António disse...

Enquanto lia lembrava-me «Quando os Lobos Uivam». A narrativa, leva-nos ao ambiente, através de descrições que eu aprecio. Esta é uma história pouco conhecida, duma realidade bem actual.
Fico a aguardar os próximos episódios.