terça-feira, dezembro 19, 2006

UMA HISTÓRIA DE NATAL : As Tribulações de um Dador Benévolo

Assediava-o uma inusitada vontade de praticar o bem, de amar o próximo como a si mesmo, de se abrir a rasgos de generosidade em relação a indigentes e outros desprotegidos da sorte. Quem o conhecia – amador da sua pessoa acima de todas as coisas – só podia atribuir tal modificação ao espírito do Natal, à ambiência da quadra festiva que se vivia. Os feéricos ornamentos das ruas, os apelos à paz e ao amor feitos naquelas canções cheias de emoção que a rádio e as instalações sonoras das superfícies comerciais com tanta insistência difundiam, só podiam contribuir para reforçar os laços de solidariedade entre os homens, para fazer despertar os tesouros da fraternidade, enchendo-lhe o coração de bons sentimentos e benévolas disposições. Depois de todo um ano em que atraiçoou amizades, atropelou direitos alheios, mentiu e guerreou, era extraordinário sentir o maravilhoso estado de alma que nele se manifestava.
Naquele Natal, a maior das boas acções que tinha projectado praticar era uma dádiva de sangue. Havia tantos acidentes na estrada, tantos idosos a necessitarem de intervenções cirúrgicas e de transfusões e, por outro lado, como os serviços de saúde não cessavam de informar, tanta falta de sangue de todos os tipos, que estava firmemente disposto a tornar-se um dador benévolo.
Numa manhã da semana que antecedia o dia de Natal, arfando de amor pelo próximo, rumou ao serviço de recolha de sangue do hospital da sua área. Tirou a senha, esperou pelo atendimento. Não demorou muito a sentar-se diante de uma jovem médica, bonita e inquiridora.
- Idade?
- 29 anos.
- Estado civil?
- Solteiro.
- Sofre de alguma doença crónica?
- Não.
- Alguma vez teve contactos sexuais com homens?
Aturdiu-se com esta pergunta.
- Sim ou não? – insistiu ela.
- Não!
- Alguma vez utilizou drogas por via endovenosa?
- Não.
- Quantos parceiros sexuais teve nos últimos seis meses?
Aqui, hesitou na resposta, um pouco perturbado. Não se importava nada de manifestar o número de mulheres com quem praticara sexo nos últimos tempos. Afinal até era daqueles que tomavam nota na agenda de cada vez que uma nova experiência tinha lugar. Não fazia segredo das suas conquistas e tinha sempre aberta, para quem quisesse ver, a sala dos troféus. Mas incomodava-o que a questão lhe fosse apresentada de forma tão neutra e profissional por aquela jovem médica de rosto atraente e corpo bem feito, e, sobretudo, que ela não tivesse juntado ao radical da palavra “parceiros” o morfema de género feminino “a” adequado à sua condição de heterossexual. Lá respondeu, enfatizando a palavra “parceiras”.
- Em alguma dessas experiências prescindiu do uso de preservativo?
Meteu a mão na consciência, até estava com vergonha de responder, mas logo se abriu perante a insistência da inquiridora. E foi aí que as coisas começaram a complicar-se. Tinha tido não uma, mas várias relações de risco, o que não quadrava com os padrões comportamentais definidos para a aceitação dos dadores benévolos. Ainda por cima fizera uma tatuagem nas costas, adorno corporal que pareceu não agradar à médica.
- Bem, para já não podemos aceitar o seu sangue. Vamos ter de fazer análises.
Esmagado pela rejeição, tartamudeou umas palavras de súplica. Que não havia nada de mal com o seu sangue, que era um homem saudável, que aceitassem a dádiva e logo fariam as competentes análises. Veriam como era sangue de primeira.
- E pensa o senhor que o hospital se pode dar ao luxo de gastar bolsas de recolha e demais consumíveis com sangue que poderá não estar em condições? Até parece que não conhece o rigor das restrições orçamentais – retorquiu a jovem médica, preparando a seringa a fim de realizar a colheita para análise.
Saiu cabisbaixo. Ainda passou pela salinha anexa para comer umas bolachas e beber um cálice de vinho do Porto. Estava mesmo a precisar.
Dispusera-se a cumprir uma boa acção que pudesse integrá-lo de forma exemplar na onda de fraternidade própria da quadra natalícia, e era impedido de o fazer por um sumaríssimo inquérito que lhe descobrira uma tatuagem nas costas e uns quantos episódios de sexo inseguro. Francamente, já não se podia viver plenamente o espírito do Natal…
No caminho para casa ia meditando, pesaroso, na melhor forma de ultrapassar aquele revés. Distribuir comida aos sem-abrigo do bairro? Dar esmola para as obras de caridade da igreja? Comprar uma caixa de postais de boas-festas da Unicef? Alguma solução teria de encontrar para concretizar o seu projecto de solidariedade para com os desvalidos da sorte. E não poderia passar daquela semana que ainda faltava para o dia de Natal, pois estaria decerto completamente ocupado consigo próprio e com os seus projectos pessoais em todo o tempo das cinquenta e uma semanas que se seguiam.

D.E.

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