sexta-feira, dezembro 22, 2006

NATIVIDADE


Manifestando a minha curiosa imunodeficiência perante o espírito natalício, aqui vos deixo esta NATIVIDADE profundamente barroca de JOSEFA DE AYALA, mais conhecida por JOSEFA DE ÓBIDOS, nascida em Sevilha a 20 de Fevereiro de 1630 e falecida em Óbidos a 22 de Julho de 1684, figura maior da pintura portuguesa do século XVII.

terça-feira, dezembro 19, 2006

UMA HISTÓRIA DE NATAL : As Tribulações de um Dador Benévolo

Assediava-o uma inusitada vontade de praticar o bem, de amar o próximo como a si mesmo, de se abrir a rasgos de generosidade em relação a indigentes e outros desprotegidos da sorte. Quem o conhecia – amador da sua pessoa acima de todas as coisas – só podia atribuir tal modificação ao espírito do Natal, à ambiência da quadra festiva que se vivia. Os feéricos ornamentos das ruas, os apelos à paz e ao amor feitos naquelas canções cheias de emoção que a rádio e as instalações sonoras das superfícies comerciais com tanta insistência difundiam, só podiam contribuir para reforçar os laços de solidariedade entre os homens, para fazer despertar os tesouros da fraternidade, enchendo-lhe o coração de bons sentimentos e benévolas disposições. Depois de todo um ano em que atraiçoou amizades, atropelou direitos alheios, mentiu e guerreou, era extraordinário sentir o maravilhoso estado de alma que nele se manifestava.
Naquele Natal, a maior das boas acções que tinha projectado praticar era uma dádiva de sangue. Havia tantos acidentes na estrada, tantos idosos a necessitarem de intervenções cirúrgicas e de transfusões e, por outro lado, como os serviços de saúde não cessavam de informar, tanta falta de sangue de todos os tipos, que estava firmemente disposto a tornar-se um dador benévolo.
Numa manhã da semana que antecedia o dia de Natal, arfando de amor pelo próximo, rumou ao serviço de recolha de sangue do hospital da sua área. Tirou a senha, esperou pelo atendimento. Não demorou muito a sentar-se diante de uma jovem médica, bonita e inquiridora.
- Idade?
- 29 anos.
- Estado civil?
- Solteiro.
- Sofre de alguma doença crónica?
- Não.
- Alguma vez teve contactos sexuais com homens?
Aturdiu-se com esta pergunta.
- Sim ou não? – insistiu ela.
- Não!
- Alguma vez utilizou drogas por via endovenosa?
- Não.
- Quantos parceiros sexuais teve nos últimos seis meses?
Aqui, hesitou na resposta, um pouco perturbado. Não se importava nada de manifestar o número de mulheres com quem praticara sexo nos últimos tempos. Afinal até era daqueles que tomavam nota na agenda de cada vez que uma nova experiência tinha lugar. Não fazia segredo das suas conquistas e tinha sempre aberta, para quem quisesse ver, a sala dos troféus. Mas incomodava-o que a questão lhe fosse apresentada de forma tão neutra e profissional por aquela jovem médica de rosto atraente e corpo bem feito, e, sobretudo, que ela não tivesse juntado ao radical da palavra “parceiros” o morfema de género feminino “a” adequado à sua condição de heterossexual. Lá respondeu, enfatizando a palavra “parceiras”.
- Em alguma dessas experiências prescindiu do uso de preservativo?
Meteu a mão na consciência, até estava com vergonha de responder, mas logo se abriu perante a insistência da inquiridora. E foi aí que as coisas começaram a complicar-se. Tinha tido não uma, mas várias relações de risco, o que não quadrava com os padrões comportamentais definidos para a aceitação dos dadores benévolos. Ainda por cima fizera uma tatuagem nas costas, adorno corporal que pareceu não agradar à médica.
- Bem, para já não podemos aceitar o seu sangue. Vamos ter de fazer análises.
Esmagado pela rejeição, tartamudeou umas palavras de súplica. Que não havia nada de mal com o seu sangue, que era um homem saudável, que aceitassem a dádiva e logo fariam as competentes análises. Veriam como era sangue de primeira.
- E pensa o senhor que o hospital se pode dar ao luxo de gastar bolsas de recolha e demais consumíveis com sangue que poderá não estar em condições? Até parece que não conhece o rigor das restrições orçamentais – retorquiu a jovem médica, preparando a seringa a fim de realizar a colheita para análise.
Saiu cabisbaixo. Ainda passou pela salinha anexa para comer umas bolachas e beber um cálice de vinho do Porto. Estava mesmo a precisar.
Dispusera-se a cumprir uma boa acção que pudesse integrá-lo de forma exemplar na onda de fraternidade própria da quadra natalícia, e era impedido de o fazer por um sumaríssimo inquérito que lhe descobrira uma tatuagem nas costas e uns quantos episódios de sexo inseguro. Francamente, já não se podia viver plenamente o espírito do Natal…
No caminho para casa ia meditando, pesaroso, na melhor forma de ultrapassar aquele revés. Distribuir comida aos sem-abrigo do bairro? Dar esmola para as obras de caridade da igreja? Comprar uma caixa de postais de boas-festas da Unicef? Alguma solução teria de encontrar para concretizar o seu projecto de solidariedade para com os desvalidos da sorte. E não poderia passar daquela semana que ainda faltava para o dia de Natal, pois estaria decerto completamente ocupado consigo próprio e com os seus projectos pessoais em todo o tempo das cinquenta e uma semanas que se seguiam.

D.E.

domingo, dezembro 10, 2006

CARTA AO PAI NATAL

Ex.mo Senhor,
Devo dizer-lhe, em primeiro lugar, que não encontrará nesta carta as expressões afectuosas e de submissa pedinchice que está habituado a receber dos seus inúmeros admiradores espalhados por todo o orbe. De facto, não só não nutro qualquer simpatia pela rotunda e esdrúxula pessoa de V. Exa., como, por razões que adiante compreenderá, não me é permitido aceitá-lo como representante supremo desta época festiva em que nos habituámos a viver e a comemorar o nascimento do Filho de Deus.
Certamente se recordará que na meninice dos homens e mulheres que, neste país, têm hoje cinquenta e mais anos de idade, nunca a pessoa de V. Exa. era chamada para a entrega de prendas ou brinquedos na noite mágica de Natal. Tínhamos para isso uma figura bem mais credível e ajustada à quadra – o Menino Jesus – a quem não escrevíamos cartas, pois tratando-se de um recém-nascido não poderia naturalmente lê-las, mas a quem rezávamos de joelhos no chão, junto às chaminés de nossas casas, pedindo o carrinho de corda, o triciclo, a boneca de cartão ou os chocolates. A personalidade de V. Exa. era praticamente desconhecida das nossas infantis pessoas, só nos chegando notícia sua, eventualmente, através de algum postal de boas-festas remetido do eldorado americano por um qualquer parente ali emigrado.
Nestas últimas décadas, beneficiando da cumplicidade dos poderes constituídos, tem V. Exa. assumido a representação simbólica do Natal. Paulatinamente, como quem não quer a coisa, foi matando o Menino Jesus que sempre habitara os nossos sonhos de criança – um crime tão bárbaro e nefando como a própria morte do Jesus adulto – insinuando-se junto das novas gerações através de agressivas campanhas de publicidade organizadas pelas grandes multinacionais dos electrodomésticos, das consolas, dos jogos de computador e de toda a classe de brinquedos. V. Exa. vendeu a ternura do Natal aos capitalistas da SONY e da NITENDO, aos fabricantes de sonhos de latão e aos oragos anunciadores de promessas de felicidade descartável. Quem o quer ver é a enviar as suas legiões de clones para a porta das superfícies comerciais, incentivando o consumo desregrado, promovendo o endividamento das famílias e assediando as criancinhas com beijos babados de infame consumismo.
Acresce que a figura e os modos apresentados por V. Exa. são do mais grotesco que se pode imaginar. Ri de uma forma estúpida e desconchavada, veste um fato ridículo que mais parece a farpela de um palhaço, não faz a barba, há quem diga que cheira mal dos pés, e, suprema ironia, garantem-nos que desce pelas chaminés para distribuir as prendas e os brinquedos, quando, com a gordura que ostenta, nem pela porta da garagem seria capaz de passar. Depois, contam-nos que viaja num trenó puxado por renas, entre a Lapónia, sua terra de origem, e os lares de cada um de nós, quando é sabido que tal trenó não existe, é pura ficção para dar um toque de romantismo à sua existência árida, pois as únicas viagens que faz, sabemo-lo bem, fá-las de avião entre as grandes praças financeiras, controlando a evolução dos seus negócios e recebendo as chorudas comissões que lhe são atribuídas pelos fabricantes de brinquedos e de electrodomésticos de todo o mundo.
Não tenho dúvidas que, com V. Exa., o Natal, na sua pureza, está irremediavelmente perdido. Porque o Natal não pode ser este falso esplendor de bens de consumo, sabiamente regido pelos interesses do capitalismo industrial e financeiro. O Natal não pode ser este vazio de alma, este deserto de emoções em redor da mesa farta e de uma árvore, dita de Natal, reverberando luminárias espúrias contra a luz verdadeira da estrela de Belém. Não bastava ter V. Exa. arrancado o Menino Jesus do coração dos homens; era preciso também que os reduzisse, como escravos, a um mero instrumento dos seus desígnios de lucro e enriquecimento ilegítimo.
É por tudo isto e pelo mais que se não diz por ser verdade – cito aqui, de cor, o poeta da Pedra Filosofal – que lhe escrevo estas modestas mas inflamadas linhas, como vivo protesto de quem não se conforma com a ditadura materialista que V. Exa. representa.
Sem outro assunto de momento, e na esperança de topar o menos possível com as execrandas réplicas de V. Exa. que por aí pululam neste período natalício, subscreve-se,

Este que sinceramente o abomina,


D.E.