quinta-feira, outubro 05, 2006

UM DIÁRIO GORDO


Para a Violeta,
belíssima personagem do romance “Os meus sentimentos” de Dulce Maria Cardoso.



Conheço o amor de ouvir falar,

escrevia ela, uma frase lida num romance ou sussurrada na bruma do fim da tarde em algum domingo triste.

Os domingos são tristes quando estamos sós.

Era sempre pelas tardes de domingo que lhe chegava a nostalgia do que nunca tivera. Sentimentos contraditórios: lembranças de beijos não partilhados, flores silvestres que não colhera, palavras e risos não acontecidos, cartas e declarações de amor que nunca recebera.
Grandes são as saudades de aquilo que nunca tivemos.
Olhava no espelho o corpo sem graça, as linhas do rosto gastas na viagem do tempo, chegada a uma estação em que já pouco se espera: cinquenta anos. Bem podiam dizer que o amor é de todos os dias da vida: ela nunca o conhecera, apenas impressões que colhera nos livros e essas palavras doidas vogando nos ares, os ouvidos da alma afeiçoados a escutá-las, a caneta entre os dedos nervosos fixando a escrita no diário. Nunca foi bonita. Sempre descaiu um bom bocado para o lado do gordo: o IMC, índice de massa corporal, calcula-se da seguinte forma…e fazia as contas para se atormentar com a desmesura do resultado final. Invejava então os corpos pré-anorécticos das top models, a graça dos narizes e das boquinhas, a leveza das pernas e das ancas sobre as passerelles como se voassem a trespassar as nuvens. Em menina quis ser modelo, ou bailarina. Lembrava-se de ver na televisão a Twiggy, o cabelo louro cortado à rapaz e as pernas muito magras e compridas a romperem da mini-saia. E a Margot Fonteyn, no esplendor da sua meia-idade, a dançar o Lago dos Cisnes com aquele bailarino russo de quem já não recordava o nome.

Mulheres ou pássaros?, nunca tive a certeza.

Sentia-se acorrentada à brutalidade de um IMC de trinta e seis vírgula cinco, uma obesa de grau dois, risco severo de comorbilidade,

que palavra gorda!

Uma gorda presa ao chão como uma sapata de chumbo, um pássaro flácido e sem asas.

IMC = peso em quilogramas / altura em metros ao quadrado.

Escrevia nervosamente nas páginas do diário, um caderno em forma de livro atravessado por uma cinta de plástico que entrava na ranhura de um pequeno fecho, uma minúscula chave aprisionando a cinta e guardando de olhares indiscretos a intimidade da escrita. Era sempre aos domingos à tarde, ao fim da tarde, entre o testemunho do espelho e a consulta de uma velha balança desregulada com uma margem de erro de cerca de três quilos. Nada de importante: não chegava a quatro por cento do seu peso corporal. Abria as janelas e aspirava a leveza da bruma. Pensava em terapias para o mal: ginásio, clínica do Dr. Tallon, medicamentos, banda gástrica. A verdade é que não se decidia por nada e cada vez gostava mais de comer, cada vez comia mais. Uma compensação como qualquer outra. Lambuzava os lábios de chocolate, deglutia umas torradas com espessas coberturas de manteiga enquanto reduzia a escrito a perturbante inconsistência do sonho.

Quando chegarás, meu príncipe?

Nas folhas do diário, mudas, alastravam as manchas de gordura.


D.E.

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