sexta-feira, outubro 27, 2006

O PERDÃO DOS PECADOS

I

Maria Madalena, és pecadora, mais pecadora do que a outra naquele tempo em que o Redentor andava pelos caminhos da Galileia, pelas margens do lago Tiberíades, em Genesaré e Cafarnaúm, a anunciar a Boa Notícia do Reino de Deus. Essa desgraçada de quem saíram, de uma só vez, sete demónios que lhe comiam o espírito e envileciam o corpo, antes de se tornar pura e serva do Senhor como Joana e Susana, mulheres que deixaram o mal e seguiram o exemplo da dulcíssima Maria, mãe de Jesus, filha de São Joaquim e de Santa Ana, a que concebeu sem mácula de pecado. Maria Madalena, arrepende-te dos erros e dos vícios da carne, entra no rebanho do Senhor e salva a tua alma do fogo do Inferno, dos martírios de Belzebu e dos seus malignos apaniguados. Abre os olhos, fêmea impura, escrava da fornicação, pelo amor de Nosso Senhor abre os olhos, que o pior cego é aquele que não quer ver. Vai com a graça de Deus, mulher, e como satisfação penitencial reza cem pais-nossos e cem ave-marias, queima uma vela no altar de Nossa Senhora Auxiliadora. Eu te absolvo dos teus pecados.

II

Maria Madalena, viúva de quarenta anos, sem filhos, alugadora de quartos a estudantes do Instituto Politécnico, trazia sete aboletados em sua casa: um de contabilidade, outro de electrotecnia, dois de engenharia mecânica, e três de enfermagem, embora estes, por razões que adiante se compreenderão, não fossem vistos nem achados no progresso do emaranhado caso de que se ocupa o presente escrito.
Todos os sete estudantes que estanciavam em casa de Maria Madalena faziam-no em regime de dormida simples, o que quer dizer, sem refeições e tratamento de roupas, embora, em boa verdade, as dormidas proporcionadas pela diligente hospedeira fossem tudo menos simples, como desde cedo foi do domínio público e a descrição destes insólitos sucessos se encarregará de evidenciar.
Numa cidade de província tudo se sabe, nada se esconde: as notícias espalham-se pelas ruas e tabernas, pelos jardins e adros das igrejas, ninguém fica indiferente à sua viscosa propagação.

III


O auto de averiguações foi mandado abrir pelos Serviços Sociais Escolares: coisa de inquiridores, inquiridos, testemunhas e escrivão do auto, todos nomeados em ordem de serviço com a assinatura de quem para tal tinha autoridade. É que a casa de Maria Madalena, como outras casas da cidade, funcionava como extensão da residência social escolar para estudantes economicamente desfavorecidos, por esta ter esgotado, há muito, a capacidade de oferta de alojamentos.
Apuraram os inquiridores, logo que se lançaram no seu árduo trabalho, que em vez de dormidas singelas, em honestas camas de solteiros, de lençóis limpos e acolhedores edredões, o ideal para repor as forças e motivar os estudos, adquirir os saberes e alcançar as almejadas formaturas, eram servidos os estudantes com prestações extraordinárias, cómodos não contratados, benesses que só o poderiam ser em certo sentido muito fora da moral vigente e do senso comum das pessoas de bem.
O escrivão do auto, um funcionário minucioso à beira da reforma por limite de idade, encarregou-se de lavrar nas folhas de papel azul de vinte e cinco linhas, com inexcedível zelo, todos os factos e ocorrências resultantes das inquirições.

IV


Aos tantos dias do mês tal do ano tal, nesta cidade de, na casa de hóspedes conhecida pelo nome de Casa de Maria Madalena, sita na Rua dos Prazeres, número dez, primeiro andar, onde há três quartos cedidos aos Serviços Sociais Escolares deste conceituado Instituto Politécnico, alojando-se neles, em regime de dormida simples, por carência de rendimentos dos respectivos agregados familiares, conforme processos tempestivamente apresentados ao Excelentíssimo Senhor Director e oportunamente deferidos em conformidade, os estudantes tais e tais, dos cursos tais e tais, foi feita a vistoria das instalações e inquirida a citada Maria de Magdala, digo, Maria Madalena, viúva, de quarenta anos, natural da freguesia dos Mártires desta cidade. Às perguntas formuladas pelos senhores inquiridores sobre a matéria em apreço, declarou ter partilhado a sua cama com alguns dos estudantes ali alojados, dormindo com eles, e tendo apresentado como justificação para o insólito comportamento o desejo de proporcionar maior comodidade aos jovens instalados na sua casa, visto que todos os outros quartos, à excepção do seu, estão virados a norte, sendo muito permeáveis aos frios da madrugada. Mais declarou que sempre o fizera como de mãe para filho, movida por desejo de servir e vontade de minorar o desconforto de jovens que se encontram apartados das suas famílias.
Ouvidos os estudantes de contabilidade, electrotecnia e engenharia mecânica, todos confirmaram terem dormido várias noites acompanhados da citada Maria Madalena pelas mesmas razões que a hospedeira aduziu, não sendo capazes de precisar dias, ou melhor, noites em que tal ocorreu, e salientando que mesmo que lhes chamassem nomes, daqueles que pudessem ofendê-los na sua virilidade, não deixariam de garantir não os ter movido qualquer fogosidade lúbrica ou desejo de tirarem prazer sexual de uma senhora com idade para ser sua progenitora, pessoa que sempre respeitaram como os bons filhos respeitam a mãe de família.
Ouvidos em seguida os três estudantes de enfermagem, todos disseram não saber de nada nem nunca terem visto nada, e que sempre dormiram nas suas camas individuais, não precisando de dormir acompanhados da sua hospedeira, pessoa que estimam, se não como mãe pelo menos como tia ou prima em segundo grau, pois frequentando uma turma com cerca de trinta candidatas a enfermeiras, encontrariam aí, sempre que precisassem, um campo mais fecundo e entusiasmante para satisfação daquelas subentendidas necessidades, matéria que foi declarada espontaneamente pelos inquiridos e deverá, segundo o nosso modesto entender, ser objecto de uma completa averiguação junto da área escolar do referido curso de enfermagem, para salvaguarda do bom nome e imagem moral da classe sócio-profissional das enfermeiras, a qual, por dizeres como este e famas de não comprovado proveito é tradicionalmente lançada nas ruas da amargura pelo vulgo ignaro.
Ouvida na mesma data, mas já na sede destes serviços, a testemunha Maria das Dores, empregada de limpeza, que cumpria serviço entre as oito e as onze da manhã, fazendo camas e lavando o chão dos quartos e das casas de banho, se apurou e, como tal, fica exarado, para que seja dado o atinente seguimento processual, os factos e ocorrências que se passam a indicar. Ponto um: que a proprietária da casa não só proporcionava roupa limpa de cama e colchões de qualidade aceitável, como aquecimento nos quartos e adequado isolamento das frinchas das portas e janelas, não se tendo provado que os quartos fossem frios e que por isso os estudantes implicados tivessem de ir granjear brasido no quarto da Maria Madalena. Ponto dois: que várias vezes foi visto pela supracitada Maria da Dores, ao entrar ao serviço, estudantes a dormirem na cama com a hospedeira, e que pelo menos em uma vez, numa manhã do mês de Dezembro cujo dia não sabe indicar, até estavam dois deitados com ela. Ponto três: que a Maria Madalena sempre dissera à empregada de limpeza para não falar no assunto a ninguém, para não lhe estragarem a vida, mas que a serviçal achara conveniente não se calar por se aperceber que os pobres rapazes estavam a afundar-se nos seus estudos com a ilusão dos deleites que diariamente, ou melhor dizendo, nocturnamente lhes eram proporcionados pela hospedeira com grave prejuízo da sua formação moral e pesado dano para as famílias que se sacrificam para lhes pagarem os estudos. E mais não se apurou.
Inquirida ainda uma segunda testemunha, aos tantos dias do mês tal do mesmo ano, de nome Teresinha do Espírito Santo, doméstica, moradora no andar inferior ao da Maria Madalena, dormindo com o seu legítimo esposo, funcionário da repartição de finanças, em quarto situado por baixo do da hospedeira já inquirida, declarou ter ouvido durante várias noites estrepitosos exercícios de cama com grande cópia de gemidos de fêmea e resfôlegos de machos, situação possível devido à má qualidade da construção que não dispõe de placa entre os pisos com a espessura e isolamento exigidos por lei, o que muito a incomodou, a ela e ao seu digníssimo esposo, pessoa nada dada a desconcertos de tão vil natureza, e que muito o prejudicaram, pela falta de descanso, no cumprimento dos seus deveres laborais.
E assim foram inquiridos e ouvidos todos os implicados e testemunhas arroladas.
Termos em que são dados como provados os factos e ocorrências chegados ao conhecimento destes Serviços Sociais Escolares, e que determinaram a abertura do presente auto de averiguações, demonstrando-se que a casa da Maria Madalena não reúne as condições necessárias para albergar os jovens do Instituto Politécnico ali residentes, devendo os mesmos ser repartidos por outras unidades de acolhimento e cessar por cumprimento defeituoso o contrato estabelecido entre estes Serviços e a citada hospedeira.
No entanto, o Excelentíssimo Senhor Director do Instituto Politécnico, fazendo uso do seu alto critério, decidirá como melhor entender.
Aos tantos dias do mês tal, ano tal, neste Instituto e cidade de.
Os inquiridores, Fulano e Beltrano. O escrivão do auto, Sicrano.

V

Maria Madalena, minha filha, condenou-te a lei dos homens, mas os teus pecados já haviam sido perdoados pela justiça de Deus. Também pecou a irmã de Lázaro e de Marta, e não foi por isso que deixou de ungir os pés do Senhor com perfumes de nardo, enxugando-os com beijos de arrependimento e a seda dos seus cabelos.
Agora que te não permitem receber hóspedes, sejamos piedosos com a tua situação. Peço-te que, para não ficares privada do santo pão de cada dia, para que te não falte o sustento, aceites servir como governanta na residência dos senhores padres da Sé.
Sabes bem, minha filha, como são penosos os ofícios divinos. Se algum senhor padre chegar cansado e com sede, sê como a Samaritana quando encontrou Jesus junto ao poço de Jacob: dá-lhe de beber, que é a tua sede que sacias com a água viva da salvação. Se algum senhor padre chegar com fome, desejoso de comer, trata-o com atenção e afecto, pois é o pão que sustenta para sempre que tu mesma estás a comer.
Ama-os e segue-os, como as santas mulheres amaram e seguiram o Nazareno.
Cuida deles como se fossem de tua própria casa e nunca te arrependas do bem que fizeres em nome da obra do Senhor. Ámen.


D.E.

terça-feira, outubro 17, 2006

O BANHO DE ESTER, Théodore Chassériau (1819-1856)


ESTER, jovem judia, viveu no tempo do poderoso Assuero, soberano da Pérsia que reinava sobre cento e vinte e sete satrapias, desde a Índia à Etiópia.
Foi admitida no harém real como candidata a rainha. A rainha Vasti tinha sido deposta por desobediência, e o rei teve de encontrar uma substituta. Durante doze meses se preparou Ester, guardada pelo eunuco real e assistida por escravas fiéis, submetendo-se a tratamentos de beleza à base de óleo de mirra, bálsamos e cremes. L
evada à presença de Assuero no décimo mês, o mês de Tebet, foi escolhida como a mais bela, ocupando o lugar deixado vago pela insubmissa Vasti.
O que ela fez, como rainha, para salvar o povo de Deus das ameaças que sofria, é história interessante de se ler. Veremos a arbitrariedade dos poderosos, a reposição da justiça e, finalmente, o violento extermínio dos perseguidores pelos que tinham antes a condição de perseguidos.

(Bíblia Sagrada, Outros Livros Históricos, Ester: o poder ao serviço da justiça.)
D.E.

segunda-feira, outubro 16, 2006

ÁLVARO DE CAMPOS

Carta astral de ÁLVARO DE CAMPOS

Nasceu em Tavira no dia 15 de Outubro de 1890, à uma e meia da tarde, conforme comprova o horóscopo feito para essa hora. Formou-se em engenharia naval em Glasgow. Andou em viagem pelo Oriente, onde consumiu ópio e se encheu de tédio. Aprendeu latim com um tio padre que era das Beiras. Reconheceu como seu mestre Alberto Caeiro, de quem disse ser o único poeta do mundo inteiramente sincero. Passou um mandado de despejo aos mandarins da Europa. Execrou Anatole France, Bernard Show, H.G. Wells e Maeterlink. Foi futurista à Walt Whitman. Fala-se pouco da sua morte. Em 1929 dizia:

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Ontem, se fosse vivo, faria cento e dezasseis!
Com um dia de atraso aqui vai a homenagem, Mestre.
D.E.

UM ALEPH NO SÓTÃO

Um Aleph é, segundo Borges, além da primeira letra do alfabeto da língua sagrada, um ponto do espaço onde estão contidos todos os pontos, um lugar onde se concentram todos os lugares do mundo, vistos na multiplicidade dos seus infinitos ângulos. Quem descobrir um Aleph terá acesso a tudo o que existe e não existe, será possuidor da verdade sobre a essência das coisas, verá cada pessoa por fora e por dentro, conhecerá todos os mares e todos os rios, os desertos e os vales férteis de todo o planeta.
Isto dizia-me, num dos habituais serões em sua casa, o meu amigo Sousa, enquanto ia fumando o cachimbo e bebendo generosos tragos de brandy Miguel Torres, um néctar destilado e engarrafado em Vilafranca del Penedés, Catalunha, que lhe chegava com regularidade, em caixas de seis unidades, através dos seus delegados comerciais de Barcelona.
O meu amigo era, além de bom anfitrião, um ávido leitor de Borges, e estava sempre disposto a inquietar a indigência das minhas aptidões especulativas com divagações do género das que o poeta argentino faz no Argumentum Ornithologicum ou em enigmáticas narrativas como O jardim dos caminhos que se bifurcam ou A biblioteca de Babel.
Devo dizer que apesar da minha velha amizade com o Sousa, vinda do tempo em que fui contabilista na editora de publicações esotéricas que ele dirigia, era por causa de Ester que frequentava os seus serões e me conformava a suportar o aborrecimento da suas invulgares conversas.
Ester era casada com o meu amigo e, se for perdoável a hipérbole, direi que podíamos ler mais nos seus olhos do que em todos os livros da vasta biblioteca de sua casa.
A sala onde nos reuníamos naqueles serões estava toda decorada com espelhos. Havia a um canto um tigre de loiça em tamanho natural, comprado em Moçambique, num bazar de um comerciante paquistanês, por um escritor que vira uma obra sua editada pelo Sousa. Um tabuleiro de xadrez com as peças em marfim repousava sobre uma mesa de jogo. E havia ainda, numa parede, o elemento decorativo de que eu mais gostava: uma tapeçaria de arte moderna, em tons de azul escuro e vermelho, sugerindo o inquietante perfil de um labirinto. Era junto de essa tapeçaria que Ester se costumava sentar. Eu ficava a olhar não sei bem se a obra de arte se a arte do corpo de Ester, a ler no livro aberto dos seus olhos, até o Sousa interromper o deslumbramento com referências a Teseu e Ariadne, a Dédalo e ao insaciável Minotauro, percorrendo a alameda dos mitos até chegar à família dos Palântidas, a Hipólito e a Fedra.
Imaginem o que é descobrirmos um Aleph, insistia ele, podermos saber de tudo e de todos, darmos conta do verdadeiro e do falso, conhecermos os esgares ínfimos da mentira, os rostos da traição… E eu arrepiava-me, temendo que algum inopinado Aleph pudesse alguma vez denunciar a minha indisfarçável atracção pelo corpo de Ester, ou até os pensamentos lúbricos que me corroíam a mente quando me punha a imaginá-la nua e a fazer amor, tocando a felicidade de estrepitosos orgasmos. Mas logo abjurava a irracionalidade dos meus temores, incomodado por me deixar sugestionar pela conversa do Sousa.
Ester atravessava os serões em silêncio. Apenas os olhos falavam. Não sei se leria nos meus.
Mas houve uma noite em que o meu amigo Sousa carregou de mais os balões de brandy. Como sempre, falou de Borges e de mitologia, mas a voz foi-se-lhe entaramelando, e quando se preparava para comparar a obra The God of the Labyrinth, de Herbert Quain, com os romances policiais de Agatha Christie, começou a sentir grandes dificuldades de expressão, não atinando com as palavras, deixando as frases a meio. Um pouco depois sobreveio-lhe um torpor fatal que o lançou nos braços de Morfeu. Ester e eu levámo-lo para o quarto, despimo-lo, metemo-lo entre lençóis.
Foi assim que fiquei sozinho com Ester. Apenas os espelhos, devassos, deitavam sobre nós os seus grandes olhos de luz. Ficámos sentados, ao lado um do outro, no sofá fronteiro à tapeçaria do labirinto. Nunca nos tínhamos habituado a falar, sempre nos limitáramos a ser ouvintes do Sousa, daí a dificuldade em iniciarmos uma conversa. Falaram os olhos, enquanto o Sousa ressonava no quarto. Os joelhos e os braços nus de Ester enchiam de reflexos o cristal dos espelhos. E havia o labirinto, qual o caminho que ia da sombra à claridade?
Ester parecia-me nessa noite mais bela e sensual, mas isso devia ser por a ter ali ao pé de mim, sozinha, disponível, afinal tão frágil.
Foi ela que estendeu o fio no chão, bastou segui-lo, no labirinto das emoções, para encontrar a luz. Depois já não soubemos nada de nós nem de ninguém, ia alta a madrugada quando a deixei.
O meu amigo Sousa telefonou-me uns dias mais tarde. Perguntei por Ester. Disse-me que tinha saído para casa da mãe, por uns tempos ou para o tempo todo da vida. Estranhei o tom da conversa. Mas o mais surpreendente foi a comunicação que me fez, com solenidade, de ter descoberto um Aleph no sótão de sua casa.
Imagina, dizia ele, um ponto que contem todos os pontos, onde podemos ver e saber de tudo. E fazia questão que fosse a sua casa, nessa noite, para subir ao sótão e no ângulo próprio certificar-me do seu grande achado.
Não sei se alguma vez cheguei a acreditar na possibilidade de existir um Aleph no sótão da casa do Sousa ou até de poder ser real essa alegada fantasia de Borges. Sou um céptico por natureza e não confundo literatura com realidade. Mas pelo sim pelo não, resolvi não ir. Aliás, nunca mais voltei a encontrar-me com o meu amigo. Mesmo que o enigmático ponto não passasse de uma invenção sua e não existisse portanto qualquer possibilidade de, por essa via, se vir a descobrir o que se passara entre mim e Ester, creio que o Sousa teria lido tudo com facilidade nos meus olhos. Como os olhos de Ester e de todos os puros, também os meus são um livro aberto.

D.E.

quinta-feira, outubro 05, 2006

UM DIÁRIO GORDO


Para a Violeta,
belíssima personagem do romance “Os meus sentimentos” de Dulce Maria Cardoso.



Conheço o amor de ouvir falar,

escrevia ela, uma frase lida num romance ou sussurrada na bruma do fim da tarde em algum domingo triste.

Os domingos são tristes quando estamos sós.

Era sempre pelas tardes de domingo que lhe chegava a nostalgia do que nunca tivera. Sentimentos contraditórios: lembranças de beijos não partilhados, flores silvestres que não colhera, palavras e risos não acontecidos, cartas e declarações de amor que nunca recebera.
Grandes são as saudades de aquilo que nunca tivemos.
Olhava no espelho o corpo sem graça, as linhas do rosto gastas na viagem do tempo, chegada a uma estação em que já pouco se espera: cinquenta anos. Bem podiam dizer que o amor é de todos os dias da vida: ela nunca o conhecera, apenas impressões que colhera nos livros e essas palavras doidas vogando nos ares, os ouvidos da alma afeiçoados a escutá-las, a caneta entre os dedos nervosos fixando a escrita no diário. Nunca foi bonita. Sempre descaiu um bom bocado para o lado do gordo: o IMC, índice de massa corporal, calcula-se da seguinte forma…e fazia as contas para se atormentar com a desmesura do resultado final. Invejava então os corpos pré-anorécticos das top models, a graça dos narizes e das boquinhas, a leveza das pernas e das ancas sobre as passerelles como se voassem a trespassar as nuvens. Em menina quis ser modelo, ou bailarina. Lembrava-se de ver na televisão a Twiggy, o cabelo louro cortado à rapaz e as pernas muito magras e compridas a romperem da mini-saia. E a Margot Fonteyn, no esplendor da sua meia-idade, a dançar o Lago dos Cisnes com aquele bailarino russo de quem já não recordava o nome.

Mulheres ou pássaros?, nunca tive a certeza.

Sentia-se acorrentada à brutalidade de um IMC de trinta e seis vírgula cinco, uma obesa de grau dois, risco severo de comorbilidade,

que palavra gorda!

Uma gorda presa ao chão como uma sapata de chumbo, um pássaro flácido e sem asas.

IMC = peso em quilogramas / altura em metros ao quadrado.

Escrevia nervosamente nas páginas do diário, um caderno em forma de livro atravessado por uma cinta de plástico que entrava na ranhura de um pequeno fecho, uma minúscula chave aprisionando a cinta e guardando de olhares indiscretos a intimidade da escrita. Era sempre aos domingos à tarde, ao fim da tarde, entre o testemunho do espelho e a consulta de uma velha balança desregulada com uma margem de erro de cerca de três quilos. Nada de importante: não chegava a quatro por cento do seu peso corporal. Abria as janelas e aspirava a leveza da bruma. Pensava em terapias para o mal: ginásio, clínica do Dr. Tallon, medicamentos, banda gástrica. A verdade é que não se decidia por nada e cada vez gostava mais de comer, cada vez comia mais. Uma compensação como qualquer outra. Lambuzava os lábios de chocolate, deglutia umas torradas com espessas coberturas de manteiga enquanto reduzia a escrito a perturbante inconsistência do sonho.

Quando chegarás, meu príncipe?

Nas folhas do diário, mudas, alastravam as manchas de gordura.


D.E.

domingo, outubro 01, 2006

Três poemas de JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS

FLOR DA ALVA

Aqui, a floresta derrama uma flor acesa.
Um grito sobre as marés. Escrevo, então,
a palavra amor, ou pedra.

Uma fatia de silêncio na madrugada
alva de panos.


PÁSSARO IMPOSSÍVEL

Há o lume, uma rosa revelada pela lava no rumor
da manhã. Nos percursos da memória, há esse roedor
de brumas, o coração, onde reside o motivo do voo:
Toda a música é voo, over dose de sons ou silêncios.

Como invencível fábrica de paixões fechadas,
tu conheces as variantes do sonho. O intervalo,
o compasso da vida, nem sempre musical.
Tu conheces a palavra metrónomo,
o voo impossível dos pássaros no fogo das ravinas.


LÂMPADA NO CORAÇÃO DO FOGO

Procuras frios animais no caminho das águas.
Um relógio na cadência da noite. Uma linguagem
no firmamento das palavras.
Desfazes nas mãos a orografia do pânico.
Uma sugestão musical, quase.

José Laurindo Leal de Góis nasceu no Funchal em 1954 e radicou-se em Lisboa na década de 80. Iniciou-se no jornalismo radiofónico entre 1973-75. Revelou-se, como poeta, no “Suplemento 2000”, e na página “Letras & Artes” do Jornal da Madeira. Colaborou na imprensa regional em espaços dedicados à crónica, ensaio e poesia. Integrou-se na Direcção do Ateneu Comercial do Funchal, em 1982. Pertence ao Movimento ILHA (1975).
Participou em Exposições Colectivas e Ciclos de Poesia, organizados pelas Actividades Culturais da Câmara Municipal do Funchal. Em Jogos Florais, Saraus e Recitais promovidos pelo Ateneu Comercial do Funchal. Representou-se em projectos culturais, tais como, Olhares Atlânticos, Biblioteca Nacional-1991 e Leopardi na Madeira (1999).


(Poemas e dados biográficos extraídos do livro do autor “O Fogo e a Lágrima”, edição de CAMPO DAS LETRAS, 2003).