sexta-feira, setembro 15, 2006

"CANÇÕES DA DERROTA"

Fotografia de JOSHUA BENOLIEL (1873-1932)
Embarque de tropas do Corpo Expedicionário Português
para a Flandres,
Cais de Santa Apolónia, Lisboa, 1917


Se uma dor que é nobre vale mais que uma pobre
Estreita ledice,
Quando melhor cair em Alcácer-Quibir
Que vencer em La Lys.
Que se o servo vence, nunca ao servo pertence
A vitória que tem,
É um vão dom divino, uma sorte ou destino
E julga diademas as suas algemas
Porque o que se ergueu bravo em La Lys venceu escravo,
O outro caiu senhor.

FERNANDO PESSOA


O JL acaba de antecipar alguns poemas inéditos de Pessoa ortónimo que sairão dentro de dias em edição da Assírio & Alvim. Canções da Derrota é um deles.
Em La Lys ( 9 de Abril de 1918) não vencemos. Foi aliás o Alcácer-Quibir do CEP (Corpo Expedicionário Português), como Jaime Cortesão deixou escrito nas suas memórias da Grande Guerra. Sob o ímpeto da artilharia e das baionetas alemãs morreram naquele dia cerca de nove centenas de militares portugueses. Tudo tropa desmoralizada, cansada de guerra, cujos efectivos não eram rendidos desde a subida ao poder de Sidónio Pais. No confronto político entre os partidários da guerra e aqueles que a ela se opunham, os soldados portugueses abandonados nas trincheiras da Flandres foram carne para canhão. O comando britânico mandou-os morrer, e eles cumpriram a ordem.
Razão tinha Pessoa: fomos para a guerra como servos. Servos do imperialismo britânico que só nos aceitou no teatro de operações quando muito bem quis, sempre com o olho guloso posto nas nossas colónias de África.
O balanço final foi trágico. Entre 1917 e 1918 foram mobilizados para combater em França 55 165 soldados portugueses, tendo-se registado 2091 mortos em combate, 234 desaparecidos e cerca de 7000 prisioneiros dos quais 233 não resistiram ao cativeiro.

D.E.

domingo, setembro 10, 2006

SETE SOPAS

- Este menino está aguado – disse o barbeiro, o olho clínico examinando, com a ajuda de pente e tesoura, os cabelos arrepiados da criança. Sentava-se o pequeno numa tábua disposta sobre os braços da cadeira giratória, os pés na almofada do assento verdadeiro que o fígaro nunca deixava de virar ao contrário quando um novo cliente sucedia no lugar, poupando-o assim aos incómodos calores que as carnes traseiras sempre derramam nos sítios onde se acomodam. A mãe do menino ouviu o diagnóstico do barbeiro, apertou nervosamente nas mãos a magreza do porta-moedas, e um trejeito percorreu-lhe os lábios descoloridos. Poderá muito bem ter sentido um aperto no peito, impressão muito frequente nas mães quando alguém fala das suas crias de forma tão desanimadora. E corou de vergonha, ou talvez de raiva impotente, pois conhecia perfeitamente o significado de estar aguado, o mesmo que ter água a crescer na boca, desejo de comer, satisfação muito limitada em sua casa e que a rebeldia dos cabelos do menino se encarregara de denunciar.
Bem poderia ter sido ela a dar-lhe umas tesouradas. Não tinha muito jeito, mas poupava o dinheiro do corte e teria evitado aquela denúncia num salão de barbearia repleto de clientes. O que se diria na sua rua no dia seguinte, se calhar até no próprio dia, quando os homens chegassem a casa e comentassem com as mulheres: “O miúdo da nossa vizinha, a do rés-do-chão do prédio de esquina, está aguado. Tem o cabelo que até parece os espinhos de um ouriço-cacheiro, aquilo é só fominha, coitada da criança. É o que faz uma família sem pai. Mas se o pai se foi embora é porque se calhar a mulher não é boa de aturar. Não sabem segurar os maridos e depois as crianças é que pagam.” Ia andar nas bocas do mundo, disso não tinha dúvidas. Só que cortar o cabelo na barbearia tinha uma justificação: a visita da madrinha. Não queria que o menino lhe aparecesse com o cabelo cortado às três pancadas, uma carinha tão perfeita que até dava gosto, e a madrinha ajudava-a tanto, boa mulher, pena que não tivesse mais posses, vivia apenas do seu trabalho na companhia telefónica, viúva e sem filhos, um ordenado certo mas modesto.
- Sete sopas – voltou à carga o barbeiro – sete sopas de panelas diferentes: feijão, canja, grão-de-bico… o que for. Sete sopas misturadas, um pratinho ao almoço e outro ao jantar, repetir no dia seguinte, vai ver que passa.
Sim, já tinha ouvido falar de tal remédio para aquele mal. Sete sopas. Mas se ela tinha tanta dificuldade em confeccionar uma única sopa, onde iria arranjar os géneros para sete? Feijão, canja, grão-de-bico…, custava um dinheirão uma couve, galinha nem falar, o pior era se a madrinha desse conta do estado do cabelo do afilhado, o que iria pensar, o menino aguado, que vergonha!
Tantas vezes andara ela pelo mercado a pedir às vendedeiras as folhas duras dos repolhos, a rama das cenouras, magros ingredientes das suas sopas, e a pobreza envergonhada obrigando-a a dizer que era para dar aos coelhos, uma gaiola cheia de coelhos no quintal de sua casa. Beneficiava também da caridade das senhoras da igreja: leite em pó, nacos de queijo amarelo, até roupa, tudo coisas que vinham da América, grande país que tão desinteressadamente ajudava os pobres de todo o mundo. Com tantas dificuldades, não sabia como é que conseguiria resolver o problema. Sete sopas. Para mais agora que o menino tinha entrado na escola: o livro da primeira classe, os cadernos, a pedra e o lápis de lousa para ensaiar as primeiras letras e os primeiros algarismos, a pasta para acomodar todo o material, a bata branca, tantas despesas. Felizmente que tinha a ajuda da madrinha, mas não chegava. E depois, um novo sobressalto a tomar conta dela: a hora de saída da escola, a rua dos eléctricos. Bem que recomendara ao menino para nunca atravessar sozinho a rua dos eléctricos, que, caso se atrasasse e não estivesse na escola à hora da saída, esperasse sempre por ela. Como era perigosa aquela rua! Ainda não existiam passadeiras para peões, nem semáforos, apenas uns polícias sinaleiros a quem chamavam cabeças de giz por causa do capacete branco, e que só se interessavam pelo trânsito dos carros, cujos condutores, no Natal, lhes ofereciam garrafas de vinho do Porto. Era vê-las dispostas à volta do estrado circular, como quem proclama: “Tragam mais. E é se querem passar logo e evitar as multas…” Desta gente nunca se esperaria ajuda para uma criança atravessar a rua.
Teria de pedir uma concha de sopa a cada uma das senhoras da igreja. Sete. Começaria pela catequista do menino, ela lhe diria a quem se dirigir em seguida. Eram pessoas que conheciam e compreendiam as suas dificuldades, muito diferentes dos vizinhos da rua onde morava que insistiam em vê-la como uma mulher nervosa e azeda que não soubera prender o marido. As senhoras da igreja moravam todas no bairro novo, famílias que podiam pagar rendas de casa de um conto de réis. Levaria uma pequena panela, mentiria, diria que o menino ficara aguado por causa das guloseimas expostas na montra da pastelaria. Não suspeitariam de nada, parecia uma explicação natural. E já o via recuperar a normalidade dos seus cabelos ondulados, o risco impecavelmente direito e uma madeixa caída sobre a testa, os olhos brilhantes, segurando a pasta escolar, recebendo os louvores do senhor professor pela correcção dos trabalhos de casa, os ditados sem erros, as cópias de bonita caligrafia, as operações aritméticas sempre bem feitas, certificadas por indesmentíveis provas dos noves, os cadernos de problemas com os resultados exactos, o senhor professor riscando sobre cada problema do caderno um grande C de certo, nenhum E de errado. E via-o a chegar a casa à hora do lanche, andava agora na quarta classe, era um rapazinho bonito que já olhava com interesse para as rapariguinhas, a beber um grande copo de leite e a comer um pão com manteiga e fiambre, e depois, à noite, após ter estudado as lições de História e de Geografia, a jantar um grande bife com um ovo a cavalo acompanhado de batatas fritas muito louras. Via-o mais adiante, no liceu, aprendendo Francês e Matemática, sempre com boas notas, o senhor reitor a chamá-la e a dizer-lhe que era ele, o seu menino, o melhor estudante do curso, que ia entrar no quadro de honra e receber um diploma numa sessão solene no ginásio. E ela a mandar fazer-lhe um fato apropriado para momento tão importante, o senhor reitor e os senhores professores na mesa onde se ia entregar o prémio, e ele a subir ao palco e a receber os aplausos de todos os colegas e suas famílias, abraçando-a depois e dizendo-lhe: “Mãe, como eu te amo!” Já com dezoito anos via-o a trabalhar num banco, e, mais tarde, profissional experiente, a dar conselhos aos clientes sobre a melhor forma de aplicarem os seus dinheiros, artes que ela não entendia, mas que sabia existirem, por alguma razão havia gente tão rica, poucos, a maioria era constituída por pobres como ela, alguns até nem conseguiam criar os filhos com dignidade.
- Minha senhora – disse o barbeiro – aqui tem o rapazinho com o cabelo cortado. Paga para a próxima, este mês não estou a levar dinheiro a crianças. E passe lá por casa para a patroa lhe dar um bocadinho da sopa do jantar. Lembre-se de que são sete sopas. Sete sopas de panelas diferentes.
Ela encarou aparvalhada a figura que lhe entregava o menino, sentiu que todos a olhavam no salão da barbearia, e teve dificuldade em perceber se tudo aquilo pertencia à realidade ou se ainda fazia parte do sonho.

D.E.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Há um ano – 6 de Setembro de 2005 – arrancava este blogue com um excerto do discurso filosófico de Xico Futa na Estória do ladrão e do papagaio do livro Luuanda (1964), de Luandino Vieira, português de nascimento, angolano de nacionalidade, escritor revolucionário, vítima da PIDE, dirigente cultural no pós-independência, cenobita de vocação tardia e recusador de prémios literários, um grande vulto da lusofonia, ou da lusofolia, se quisermos usar o vocábulo de Mia Couto.
Reincidimos hoje com a epígrafe de Luuanda, frase extraída de um conto popular de Angola:

Na nossa terra de Luanda passam coisas que envergonham…

Infelizmente, parece que ainda é assim.
D.E

sexta-feira, setembro 01, 2006

MEMÓRIA DA GUERRA PENINSULAR

Goya - Os Fuzilamentos da Moncloa


Domingos António de Sequeira - Junot Protegendo a Cidade de Lisboa

Em 30 de Agosto de 1808 era assinada a Convenção de Sintra entre Jorge Murray, tenente general do quartel mestre general das tropas britânicas, e Kellermann, general de divisão do exército de Junot, pondo fim à primeira invasão francesa. Foi um pacto indigno, que até em Inglaterra suscitou clamores, permitindo a retirada dos franceses com armas e bagagens, incluindo o saque, em navios disponibilizados pelos nossos aliados britânicos.
As ilusões que alguns intelectuais portugueses depositaram no vendaval napoleónico, aniquilador do Antigo Regime e da aliança entre o trono e o altar, cedo se desvaneceram perante a pérfida conduta da soldadesca gaulesa sob o mando de Junot, duque de Abrantes, antigo embaixador no nosso país, que chegou a alimentar o sonho de se tornar rei de Portugal. Veja-se a este propósito a obra El-Rei Junot de Raul Brandão.
Ilusões bem patentes em Domingos António de Sequeira, pintor pré-romântico, criador do célebre quadro Junot Protegendo a Cidade de Lisboa.
Depois de Junot teríamos ainda a protecção de Soult e a de Massena, só ficando livres da praga francesa em 1811. Os ingleses, esses, ainda por cá ficaram mais uns tempos, até 1820, ano da Revolução Liberal.
Em Espanha – onde Napoleão usurpou o trono e colocou como rei, em Madrid, o seu irmão José Bonaparte – Goya também acreditou no vendaval de liberdade que a França prometia. Logo se desenganou, deixando-nos mais tarde, em 1814, no quadro Os Fuzilamentos da Moncloa, o testemunho da trágica noite de 3 de Maio de 1808, o massacre de patriotas espanhóis pelos invasores franceses.

D.E.