terça-feira, agosto 08, 2006

A VOLTA


Neste domingo vi-os passar em Alverca. Iam a caminho de Loures, onde tinham uma prova de montanha não sei de que categoria na serra de Montemor – Montemor Delta das cartas topográficas militares, as coisas que descobrimos quando nos pomos a mexer na névoa da memória – e logo se meteram por estradas de Caneças, Amadora e Queluz, da boca do rio ao conjunto monumental da Praça do Império, até à meta. Praça do Império, 1940, Exposição do Mundo Português, foi o meu pai que me ensinou… A memória é como um novelo de lã: é só puxar a ponta do fio. E puxando lembrei-me do Alves Barbosa e do Ribeiro da Silva. Não, não eram do Benfica nem do Sporting; eram do Sangalhos e do Académico, modestas agremiações desportivas que lançavam nas estradas, em competição, o melhor sangue de Portugal. Sim, havia Fátima, havia o fado, havia o futebol – era o país dos três efes! – mas esta era uma festa que não pagava tributo a César. Era o povo unido, muito tempo antes de ser dado como vencido. O povo que hoje se senta nas salas de cinema a mastigar pipocas e agoniza diante dos ecrãs dos televisores em alegrias espúrias. E eu, criança, de calções e boné, vendo-os chegar ao sprint no alcatrão da esperança, bebendo o amarelo da camisola e a luz de todas as cores. Por isso neste domingo não me contive e fui para a estrada assistir à passagem dos ciclistas. Uma paleta de pintor atravessando a canícula da tarde. E, coisa difícil de explicar, dei o flanco à emoção, a vista turva de água, até passarem os carros de apoio, os ciclistas em dificuldade, as ambulâncias, o carro-vassoura, e, por fim, na cauda do sonho, o cortejo sonâmbulo dos que foram obrigados a encostar à berma para dar passagem, aborrecidos com a demora a que os sujeitaram, atrasados para a praia ou para a ronda dos hipermercados, as vidinhas a escoarem-se, céleres, a poucas horas do início das telenovelas, dos concursos, dos espectáculos da vida real nos horários nobres de todas as televisões.
Vinha já a subir no elevador, de regresso a casa, quando me lembrei dos versos de Alexandre O´Neill:

O homem que pedala, que ped´alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas:
tem o por vir na pedaleira.


É O Ciclista. Mas isto são já outras histórias. Ou talvez não.

D.E.

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