terça-feira, agosto 01, 2006

CASO Nº 47

CAVALHEIRO DE 38 ANOS, SEXUALMENTE IMPOTENTE, BOA CONDIÇÃO SOCIAL E ECONÓMICA, PROCURA SENHORA FRÍGIDA, AINDA JOVEM, PARA RELAÇÃO DE CONVÍVIO. ASSUNTO SÉRIO. RESPOSTA AO TELEFONE Nº …
Ela acabara de ler o anúncio no jornal da manhã naquela página onde se publicitam serviços de massagens eróticas, vibradores certificados com a marca CE, pomadas cuja aplicação regular faz aumentar o membro fálico em pelo menos dois centímetros e meio, além da oferta pessoal de uma grande variedade de serviços: jovens universitárias que se propõem alegrar a vida monótona de casais, loiras e morenas desinibidas que vão a hotéis, homens dotados que recebem em casa com discrição absoluta. Sorriu. Por uns instantes ficou pensativa, tirando os óculos de ler que poisou sobre a secretária. Depois ergueu os olhos na direcção de um calendário de parede, compulsando a sucessão dos dias da semana: quarta-feira um congresso, quinta um seminário, sexta à tarde aulas na faculdade. E foi então que se pôde ver, com a luz artificial que jorrava do tecto a bater-lhe no rosto, como era bela. Chamou uma assistente de confiança e pediu-lhe para recortar o anúncio. Em seguida levantou-se, dirigiu-se a um móvel de arquivo em cujas gavetas, entre separadores, se guardavam diversos dossiês. Aproveitemos agora que está de pé para lhe apreciarmos a figura: estatura mediana, cabelos curtos, pernas bem torneadas, braços longos, volumes generosos no relevo do busto. Trinta anos, talvez. Vemo-la voltar à secretária com um dossiê na mão. Deixemo-la a ler.
Vamos encontrá-la uns dias mais tarde à mesa dum restaurante rumoroso, à hora do almoço, conversando com um sujeito bem apessoado que parece ser um pouco mais velho. Se não fosse a sobreposição de vozes e o tinido das loiças, os brados que os empregados lançam para a cozinha, poderíamos ouvir melhor a matéria da conversação. Percebe-se no entanto que falam do anúncio, que ele é o cavalheiro de trinta e oito anos impotente e de boa condição social e económica, e que tem lugar ali, naquela hora, o encontro agendado pelo anunciante. É preciso que se conheçam melhor. Deixemo-los falar à vontade, tanto que devem ter para dizer um ao outro, tão delicada que deve ser a substância do diálogo.
Para um casal se conhecer, um fim-de-semana à beira-mar pode ser uma excelente oportunidade. Mesmo em situação tão especial como esta em que ele se assume como sexualmente impotente e ela se dá como declaradamente frígida, pelo menos assim parece, de outra forma não teria respondido ao anúncio. Mas tratando-se em ambos os casos de pessoas sérias, animadas de honestos propósitos, como entretanto se apurou e desde já fica lavrado em acta para que conste, tudo deverá correr da melhor forma. Tenhamos fé.
A reserva no hotel foi feita para duas noites: de sexta para sábado e de sábado para domingo. É a hora de jantar. Um jantar de duas pessoas que, apesar das limitações assumidas ou apenas conjecturadas, parecem já sentir uma certa atracção recíproca pode muito bem começar com uma entrada de ostras acompanhadas de Murganheira bruto branco, vinho espumante natural excelente para deglutir marisco e peixe de todas as espécies. Depois virá um prato de salmão fumado com espargos verdes em molho tártaro. Terminará em beleza com uma sobremesa de manga salpicada de vinho doce malvasia. Tudo escolhido por ela, até parece uma ementa erótica. É então que passearão pela orla da praia. Talvez dêem as mãos, coisa natural entre um homem e uma mulher que começam a estimar-se, e provavelmente subirão para o quarto já depois da meia-noite. Antes ainda tomarão no bar um batido de chocolate gelado.
O que poderá ser dito sobre a noite deste casal? Que nenhuma angústia os assediará no momento em que, despindo as roupas, se prepararem para ir para a cama. Ele não terá de lhe provar nada, nenhum medo de falhar o desempenho sexual lhe toldará, obsidiante, a serenidade da noite. Poderá beijá-la e palpar-lhe os seios, coisa que até um homem impotente, cremos, é capaz de fazer com gosto. E ela não pedirá nada que ele não lhe possa dar. Talvez se comprima de encontro aos músculos do seu corpo e aspirando o perfume de homem adormeça tranquilamente num abraço de estátua. Mas não se insista nestes pormenores íntimos. Respeitemos a privacidade de cada um.
Sabe-se que no dia seguinte, sábado, a manhã ia adiantada e o casal não descia para tomar o pequeno-almoço. Meio-dia, uma hora, duas, duas e tal, e da recepção telefonam para o quarto informando que a sala de refeições ia encerrar dentro de meia hora, perguntando se desciam para almoçar. Mandaram subir o almoço ao quarto. E só de lá saíram já noite fechada, para comerem umas sandes e beberem um sumo, voltando de imediato ao aposento terminada que foi a frugal refeição.
Não se pense ser fácil de entender uma situação como esta. Um homem sexualmente impotente e uma mulher que, segundo parece, é frígida fechados num quarto de hotel há trinta e seis horas, apenas uma curta saída para comerem umas sandes, sem que se conheça motivo especial que ali os detenha. Tanto tempo fechados e um fim-de-semana com tanto sol. Só pensam em cama, Nem põem os pés na praia, Bem boa é ela e tem cara de quem gosta – isto são comentários dos empregados da recepção, triste gente que não sabe o que diz e só pode conjecturar, embora tenha havido quem, para não falar à toa, fosse encostar o ouvido à porta do quarto, colhendo da deselegante investigação confirmações absolutas, certezas inamovíveis, verdades de fazer brilhar os olhos.
É certo que sairão do quarto sobre as quatro da tarde de domingo, depois de a responsável pela limpeza ter telefonado a pedir a desocupação, pois tinha de preparar as instalações para os novos hóspedes que chegariam nessa noite. Peço imensa desculpa mas façam o favor de sair. Era pessoa educada, dá para perceber, não tem nada a ver com os colegas da recepção, trabalhadores de hotelaria sem formação profissional, situação inadmissível num estabelecimento de quatro estrelas, ainda por cima com tantos clientes estrangeiros. Sairão pois um pouco comprometidos, arrastando as bagagens, esgalgados, olheiras como vírgulas no discurso de longas horas. Passarão pela recepção para fazerem o check out sob o olhar ávido dos empregados que irão observá-los minuciosamente, invejando o sortudo, e a ela comendo-a com os olhos, procurando descobrir-lhe as peças da roupa interior sob a transparência do vestido, carregando as baterias das fantasias para uso oportuno, que pode ser já nessa noite quando voltarem a casa e se depararem na cama com a mulher de carnes flácidas ou menos favorecida pela formosura. O que um homem infeliz tem de fazer para cumprir com os deveres conjugais… Vê-los-emos ainda passarem pelo restaurante e pedirem uns bifes, preparando-se para abater a fome do dia, que a outra fome, de meses ou anos, não sabemos ao certo, já houve quem dela encontrasse alívio.
É segunda-feira. Podemos vê-la agora no seu gabinete de trabalho com o fim-de-semana ainda na memória. Está sentada à secretária diante do ecrã do computador. Mexe nas teclas, dá uma ordem de impressão. Extrai da impressora a folha que vai servir de frontispício a um dossiê que acaba de abrir e onde se pode ler:

FACULDADE DE PSICOLOGIA CLÍNICA

DRA. SANDRA CLÁUDIO

DEPARTAMENTO DE INVESTIGAÇÃO APLICADA
EM
IMPOTÊNCIA SEXUAL MASCULINA

TERAPIA
ATRAVÉS DE
ENVOLVIMENTO SEXUAL
COM OS PACIENTES

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CASO Nº 47


Durante alguns minutos faz algumas anotações nas páginas do dossiê. Passa as mãos pelos cabelos, desenha um sorriso entre a melancolia e a satisfação. Talvez esteja um pouco confusa, com os sentimentos ligeiramente desordenados. Em seguida consulta a agenda de mesa e é quando repara que terá de almoçar mais cedo: tem uma sessão de terapia marcada para as três da tarde.


D.E.

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