domingo, fevereiro 05, 2006

A INSTRUÇÃO DE JACÓ


Arribou numa manhã chuvosa de Inverno, as penas numa sopa, a tiritar de frio, e mesmo assim genioso de obscenidades e palrar insolente. Poisado na cerca do recreio escolar, inclinava a cabeça para cravar o olho nos gestos da miudagem.

- Papagaio louro, papagaio malcriado!

Ninguém sabia de onde viera, que ventos o haviam trazido. Mostrava uma perna anilhada, sinal de que teria dono, e apesar de enregelado parecia bem de saúde. O único problema era o vomitado obsceno que lhe saía do bico, uma torrente de inconvenientes palavras capaz de deixar intranquilo o mais negligente dos educadores.

Quem finalmente o apanhou, equilibrando-se num escadote trazido por um contínuo, foi a professora Alda, uma senhora decidida e muito habituada a lidar com aves domésticas: tinha dois periquitos e, em tempos, chegara a engaiolar um melro que cantava divinamente. Esta professora Alda era a subdirectora do colégio, dava aulas de Português, e pelas funções que exercia tinha-lhe sido atribuído um pequeno gabinete, comunicante com a biblioteca, onde passava muito tempo a preparar as lições e a ler. Era sempre a primeira a chegar ao colégio, pelas sete horas da manhã, e havia dias em que às nove da noite ainda se demorava no gabinete às voltas com as suas leituras. Era uma professora sabedora e competente, estimada por toda a comunidade escolar.

Depois de agasalhar e alimentar o pássaro, começou a pensar num nome para ele. Veio-lhe logo à ideia o nome de Jacó, tirado duma conhecida estória de Luandino Vieira, e assim começou a tratá-lo com muito afecto e serenidade, de tal forma que o bicho se acalmou e só de vez em quando lhe fugia a boca para a desgraça. O director do colégio, o Dr. Melo, informado da grosseria da ave e receoso daquele mau exemplo para a educação dos seus alunos, queria dar sumiço ao palrador. Teria sido bem mais fácil nos dias de hoje, pois poderia invocar o perigo da gripe aviária, e o animal receberia logo ordem de apresentação à inspecção veterinária, era levado para análises dentro de um saco de pano por uns senhores de luvas e máscara, pois com os vírus não se brinca. Mas não, tudo se passou há vinte anos, aquela pandemia ainda não tinha aparecido, e o Dr. Melo teve de enfrentar os insistentes pedidos da professora Alda para ficar com Jacó.

Dada a consideração que o director parecia ter pela sua docente, e também pelos indícios já manifestados de poder o pássaro entrar no bom caminho, ou seja, de esquecer aquelas abomináveis palavras obscenas, foi-lhe dada uma oportunidade. Ficaria recolhido no gabinete da professora Alda e ela trataria de o educar, com boas palavras e modos serenos, de forma a que um dia se pudesse instalar um poleiro no recreio para o acolher, passando a alegrar com a sua presença e brincadeiras a miudagem do colégio.

Ficou pois Jacó entregue à professora Alda que com muita paciência lhe começou a ler passagens dos seus livros, procurando instruí-lo com a prosa dos melhores escritores e os versos mais belos dos mais inspirados poetas. E de tudo parecia agradar-se Jacó, que bastava a professora abrir um livro para ele lhe saltar para o ombro e inclinar a cabeça de modo a acompanhar a leitura, até parecia que queria ler. Foi assim que Jacó ouviu – ou leu, quem sabe? - a “ Menina e Moça “ de Bernardim Ribeiro, acompanhando do ombro da professora Alda as diversas partes da obra: a história da Menina, o diálogo com a Dona do Tempo Antigo, as belas e tristes histórias de amor de Lamentor e Belisa, de Binmarder e Aónia, de Avalor e Arima. O que mais o impressionou foi a tragédia daquele rouxinol, uma ave como ele, que de tão apaixonado canto se deixou cair morto nas águas do rio. E Jacó pensava como era belo o sentimento da pobre ave, tão diferente de si, um triste papagaio que nunca tinha amado, perfeito ignorante dos contentamentos descontentes do amor.

Da sua vida passada, Jacó lembrava então os tristes dias vividos numa sórdida taberna, agrilhoado a um poleiro ferrugento, ouvindo conversas abjectas e aprendendo palavras indelicadas, tocadas muitas vezes pela vara do álcool, esse veneno que até chegou a provar, uma vez, quando lhe encheram o bebedouro de aguardente. Andava um bocado desarranjado de olfacto, mas o olho dizia-lhe ser como a água. Meteu o bico e a língua no líquido transparente, sorveu, desatinou quando lhe queimou a garganta e o papo. Depois veio aquele peso na cabeça, nem conseguia erguê-la, e os danados dos bêbados a rirem. Foi por episódios como este que se evadiu, vindo arribar ao colégio.

Quando, um mês depois da sua chegada ao colégio, o Dr. Melo entrou no gabinete da professora Alda para avaliar os progressos de Jacó, foi recebido com uma saudação muito correcta:

- Bernardiiiiiim! Rouxinol!

Nenhuma palavra inconveniente, nenhuma insolência, apenas o nome de um escritor e a alusão a um episódio do seu admirável livro. O director achou aquilo maravilhoso, mas receando tomar a nuvem por Juno aconselhou pelo menos mais um mês de perseverantes ensinamentos, o que não deixou de agradar à professora Alda, tanta a afeição que sentia pelo papagaio Jacó.

E os ensinamentos proseguiram. Ao fim da tarde, depois de terminadas as aulas, sempre que a professora Alda abria a porta do gabinete que dava para a biblioteca para ali ir procurar alguma obra, Jacó trepava alegremente por todas as estantes e assestava o cristal do seu olho de ave sobre as lombadas dos livros, imaginando pelos títulos as revelações neles contidas. Jacó interessava-se muito por tudo o que se relacionasse com aves, inclinação natural e fora de todo o despropósito. Afinal, ele era uma ave.

Num dia em que a professora lia um poema do poeta brasileiro Casimiro de Abreu,

“Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! Não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!” ,

Jacó ficou muito admirado com aquela ave – o sabiá – de canto tão melodioso, de quem os poetas colhiam tanta inspiração. E como o corvo da fábula, teve o desejo de cantar, de encher os ares de melodias perfumadas. Foram momentos de vaidade e tentação, depressa passaram, porque de um papagaio espera-se apenas um monocórdico palrar, já é bom que o faça de forma limpa, sem palavras torpes e  arremedos deselegantes.

Aconteceu então – estava quase a esgotar-se o segundo período de um mês concedido pelo Dr. Melo para a instrução de Jacó - ter a professora Alda começado a ler uns poemas de Alberto Caeiro, especialmente um deles em que se fala de uma pomba estúpida, a única pomba feia do mundo, ainda por cima com o nome invulgar de Espírito Santo, uma pomba que se coçava com o bico e sujava tudo do alto das cadeiras onde se empoleirava. Essa leitura causou grande perplexidade ao pobre pássaro, pois além de não compreender nada de religião, inclinação que as aves não têm, parecia-lhe absurdo dar um poeta o epíteto de estúpida a uma singela criatura da Natureza, para mais sendo uma ave. Os poetas que conhecera só diziam bem das aves: rouxinóis, sabiás, melros, rolas, andorinhas, até albatrozes, todas eram exaltadas no cantar poético. E estando ele a matutar nisto – nem se imagina do que é capaz a cabeça de um papagaio! – aconteceu entrar no gabinete o Dr. Melo e ser acolhido com um estridente grito:

- Pomba estúuuuuupida!

Calcule-se o efeito arrasador daquele grito. O Dr. Melo, lívido de espanto, dando como certa a recaída do pássaro, nem conseguia articular palavra. Ele que já tinha encomendado um poleiro para ser instalado no alpendre do recreio à entrada da secretaria. Era verdade que não se tratava de uma palavra obscena, dessas que fazem corar as pedras da calçada, mas era uma deselegância que bem poderia levar a outras deselegâncias maiores, à obscenidade declarada, enfim, à subversão de todo o sistema educacional em vigor no colégio. E inquiriu a professora Alda sobre os motivos de tal insucesso, por que razão falhara a pedagogia, que métodos foram ou não foram utilizados na instrução de Jacó.

Tudo piorou quando a professora Alda explicou não ter havido nenhuma falha pedagógica, que a pomba estúpida era de um poema de Alberto Caeiro, grande poeta, embora fictício, que a autoria verdadeira era de Fernando Pessoa, o da ´´Mensagem´´,

´´Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!”,

livro que até ganhou em 1934 o segundo prémio do concurso do Secretariado de Propaganda Nacional. Se ficou em segundo lugar e não em primeiro, foi porque, se calhar, havia outra obra de maior valor... E a tudo isto ia o Dr. Melo reagindo com uma crescente incomodidade. Pediu o livro, e ficou varado. Pois havia livros desses na biblioteca do seu colégio? Que diziam mal da religião e chamavam pomba estúpida ao divino Espírito Santo? Chamasse-se o autor Caeiro ou Fernando, ou lá o que fosse, um tal livro não poderia ficar ali, acessível a qualquer estudante em pleno processo de formação da personalidade. E deu em mandar passar uma revista a todos os livros para estabelecer os que ficavam nas estantes e os que deveriam ser removidos como impróprios para crianças e adolescentes.

Tudo isto causou muito mal à professora Alda, tanto que deu baixa médica e ficou em casa durante semanas, enquanto no colégio prosseguia a obra saneadora do Dr. Melo, estabelecendo um índice de livros proibidos, remexendo as estantes e as gavetas da biblioteca em perfeito delírio inquisitorial. Jacó assistia com perturbação a toda a faina censória. E tinha para ele como muito certo que quando o homem se põe a recear os livros, a temer as ideias, se está investido de algum poder é bem capaz de começar a cometer violências sobre os autores e quem os leia. Muito tinha aprendido Jacó naqueles dois meses de convívio com a professora Alda.

Entretanto, enquanto durava o auto-de-fé sobre os livros da biblioteca, Jacó permanecia no gabinete da professora ausente. Estava sozinho, e havia dias que nem comida lhe levavam. Limitava-se a olhar com infinita tristeza, pela porta entreaberta, o vazio que crescia nas estantes outrora cheias de belos livros, de encadernações esmeradas e lombadas flamejantes. Receoso de qualquer reacção nunca mais abrira o bico. Sentia uma grande saudade da professora Alda e de tudo o que descobrira com ela, a aventura de cada virar de página, a ternura de desarrumar e arrumar um livro numa qualquer estante da biblioteca. E se é que um pássaro pode chorar – essa possibilidade parece não estar contemplada nos tratados científicos! – Jacó chorou por várias vezes, como só uma pessoa pode chorar.

E foi então que decidiu fugir. Ao fim da tarde, apanhando uma janela aberta na biblioteca, subiu ao parapeito e encheu o olho do azul do céu. Respirou fundo, soltou as asas na mansidão da aragem e cego de luz começou a subir na direcção do Sol, cada vez mais alto, até começar a sentir um grande frio que lhe atravessava a plumagem e fazia esquecer o corpo. Pensava apenas, as forças a fugirem, nem sentia os membros. Depois, pareceu-lhe entrar num buraco negro com uma luz forte, ao fundo, que puxava por si, e à qual não conseguia resistir. Sentia-se cada vez mais fraco, mas isso perecia-lhe ser coisa natural. Afinal, nem sequer tinha almoçado.

D.E.







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