domingo, janeiro 01, 2006

RETRATO DE ORFEU COM EURÍDICE EM FUNDO

Alberto é meu amigo vai para vinte anos, desde os tempos em que, recém-licenciados, estagiámos na Direcção-Geral de Contribuições e Impostos. Não me consegui adaptar às funções de técnico tributário para que o estágio me preparava - talvez por prezar demasiado a minha independência e não me conformar com a maquinação de roubos protegidos por lei - mas o meu amigo Alberto, que tinha lido pela cartilha dos melhores mestres em finanças públicas, logrou subir os difíceis degraus da carreira e alcançar um importante lugar à mesa farta do orçamento.

Alberto é um homem positivo. Olha a vida com o seu olho azul de pragmáticas cintilações, aposta sempre - ou quase sempre - nos cavalos certos. Foi bem sucedido na carreira profissional, parecia sê-lo no amor. Mas já lá iremos…

Temos por hábito encontrarmo-nos para jantar a um dia certo do mês, nos dias cinco, excepção feita aos casos em que calhe a data em um domingo, avançando então para segunda-feira o amistoso repasto. A razão desta inoportunidade, que leva ao deslize de um dia na tábua do calendário, prende-se com uma das grandes paixões do meu amigo, que tem justamente em cada domingo o seu tempo de excelência – a caça. Alberto é caçador, um matador de rolas e perdizes, de coelhos e lebres, às vezes mete-se em montarias a dar cabo de veados e javalis.

Num certo domingo, andava eu pelo Alentejo a farejar monumentos megalíticos, os olhos ávidos de dólmenes e menhires, as pernas ainda mais doridas do que daquela vez em que me pus à procura do santuário do deus Endovélico, dou com o Alberto e o seu grupo de caçadores. Ia de escopeta ao ombro, um cinturão de coelhos mortos contra a folhagem do fato camuflado, os monteiros arrastando a matilha pelo trilho de lama da charneca. Rimo-nos do surpreendente encontro naquele recôndito lugar, e ele fez questão de me oferecer dois coelhos cuja carne saboreei no dia seguinte num suculento guisado com muitos chumbinhos à mistura.

Quando me lembro daquele grupo de caçadores, vem-me sempre à memória o filme de Carlos Saura, “ La Caza”, que vi numa sessão especial do Quarteto há um ror de tempo. Acho que foi a partir dessa altura que passei a detestar caçadores e a arrumá-los sistematicamente na mais sinistra gaveta das minhas faculdades judicativas. Excluindo, pela amizade e confiança que nos une, o meu amigo Alberto, a figura do caçador tornou-se para mim sinónimo de violência e falta de princípios éticos; posteriormente, cheguei mesmo a desenvolver uma teoria freudiana sobre a prática da caça, apresentando-a como sublimação do instinto sexual: a espingarda é o membro fálico, o cartucho a massa do sémen, os chumbos os espermatozóides - qual deles vai fecundar de morte o coração das aves e dos outros indefesos animais? O caçador, segundo a minha teoria, padece de um mórbido desinteresse pelo sexo feminino: sai de casa de madrugada, deixando sozinha a mulher, e na companhia exclusiva de homens mete-se pelas matas e charnecas do país profundo a estoirar pólvora e chumbo, elementos agressores do equilíbrio ambiental. Retorna ao lar lá para a meia-noite, bem comido e bebido, depois de dividir a caça e arrumar os cães. Cai à cama que nem uma pedra…

Assim, em cada jantar dos dias cinco, enquanto eu falava da precariedade do meu trabalho de jornalista, que é escrever sobre arte e temas de cultura, coisas aborrecidas de se lerem, o meu amigo Alberto narrava-me o seu último episódio de caça, como aquele em que se confrontou com um javali ferido que investira perigosamente sobre si. E tentava convencer-me de que a caça, como arte ou actividade lúdica, também é cultura, citando-me o “Livro da Montaria” de D. João I como prova da sua ancestral e irrefutável dignidade.

Mas Alberto tem outra paixão, os touros, e aqui também me esmaga, em sua defesa, com o peso de irrefragáveis personalidades como Hemingway ou Federico Garcia Lorca, que sendo homens de cultura e de pensamento também encontraram lugar para amar a festa brava. E recitava-me:

“A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde.”

A sua paixão pelos touros levou-o a frequentar uma tertúlia em Vila Franca onde passa as tardes e noites de sábado em ágapes e "tentaderos", além, claro, de não perder uma corrida nocturna no Campo Pequeno e de se deslocar com frequência à Andaluzia e à Estremadura de Espanha para assistir à "fiesta" e gritar olés. Lembram-se de uma manifestação que os defensores dos direitos dos animais fizeram em Barrancos contra os touros de morte? Pois o meu amigo Alberto estava na primeira linha dos contramanifestantes. Tal militância taurina deixou-me desgostoso, até faltei ao jantar desse mês pretextando uma arreliadora gripe de Verão.

Mas de quem eu queria mesmo falar-vos é de Eurídice, a mulher do meu amigo Alberto. Que dizer desta senhora que lhe deu duas filhas que já entraram na universidade? Sempre gostei dela, cada vez fui gostando mais, uma admiração contida que a amizade com o marido não me permitia extravasar. Eurídice tem quarenta anos, um corpinho próprio para a idade e uma cara que, sendo bonita, apresenta contudo reflexos de uma vaga tristeza. Tem uma voz doce, veste-se de forma juvenil, e o peito é ainda pujante de consistência e volumes apelativos. Eurídice começou há pouco tempo a frequentar o ginásio, o que revela que se preocupa com o corpo e com o aspecto físico. Comentei isso com Alberto num dos nossos jantares. Limitou-se a um encolher de ombros.

Como Alberto costuma cantar o fado, que é outro dos seus interesses, dei em chamá-lo de Orfeu, o mítico cantor amante de Eurídice, embora suspeitasse que por ela não desceria o meu Orfeu aos infernos. A vida do casal, sobretudo a partir da altura em que as filhas se fizeram mulheres, tornou-se sumamente monótona.

Cabe aqui referir um singular episódio, numa certa noite, que se passou entre mim e a mulher do meu dedicado amigo. Naquele mês, por força de o restaurante onde costumamos jantar se encontrar encerrado, fez-se o convívio do dia cinco em casa de Alberto. Toda a noite o olhar de Eurídice me abrasou a pele, vinho forte que me queimava a garganta, energia que me deixava tonto, desajeitado. Lembram-se daquele capítulo de “Dom Casmurro” de Machado de Assis – capítulo CXVIII, “ A mão de Sancha”? Pois se fizerem o favor de o ler poupar-me-ão umas boas linhas de narração, porque o que se passou foi mais ou menos como aí se explica, se é que se explica…Foi à saída, um beijo de despedida, e o fogo da mão de Eurídice, que tomou a minha, prendendo os meus dedos durante uma enormidade de tempo. “ Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao ouvido, trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.” – isto dizia Dom Casmurro, também chamado Bentinho, sobre a despedida que lhe proporcionou a mulher do seu amigo Escobar. Saí para a rua, depois de abraçar Alberto, com a sensação de me ter parado a digestão. Doía-me a cabeça, estava aturdido e nauseado. “ Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocámos. Agora achava-lhes isto, agora aquilo. Os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relógio foi assim marcando alternativamente a minha perdição e a minha salvação.” – Fala à vontade meu velho Dom Casmurro, que também eu senti o lume vivo na mão da mulher do meu melhor amigo; também eu sei aquilo que as mãos e os olhos são capazes de dizer no silêncio irremediável das palavras.

Voltemos ao meu Orfeu, o Alberto, com quem continuo a jantar e a discretear sobre coisas da vida e da amizade aos dias cinco de cada mês, salvo quando se interpõem o império da cinegética, a voragem taurina ou o apelo irreprimível do fado cantado. Na nossa última ceia, assim nomeada com toda a propriedade, pois começou, devido a inadiável compromisso do meu amigo na sua tertúlia de Vila Franca, já perto das onze horas da noite, tive uma notícia inesperada: Eurídice havia saído de casa. Tinha instruído as filhas de todos os quês e porquês da sua evasão: a monotonia da vida conjugal, a preterição a que estava sempre sujeita diante das paixões fortes do marido. As miúdas compreenderam tudo, até a apoiaram. O mais doloroso é que Eurídice tinha fugido com um qualquer Aristeu que andava lá pelo ginásio a fazer musculação. Ia para duas semanas que Alberto não lhe punha a vista em cima, apenas tinha falado com ela ao telefone, tendo-lhe sido dito que estava no Algarve e que como o tempo estava bom não pensava regressar tão cedo. Aparentemente parecia que Alberto tinha aceitado o revés com naturalidade, pois não alterou o seu ritmo de vida e nem se preocupou em descer ao Algarve infernal para a resgatar. Em verdade, os dias de hoje já não têm nada a ver com o tempo dos mitos…

Mas as semanas foram passando e a insegurança começou a instalar-se na tranquila existência do marido abandonado. A casa converteu-se numa grande desordem, porque a empregada doméstica, com a quebra da cadeia de comando propiciada pela ausência da patroa, ia descurando o cabal cumprimento dos seus deveres laborais: os aprovisionamentos e a cozinha não funcionavam, a limpeza vacilava, o serviço de roupas atrasava-se. Começaram a faltar camisas nos cabides do guarda-roupa, cuecas e peúgas nas gavetas da cómoda. Na despensa e no frigorífico as vitualhas estavam reduzidas a um mínimo de sobrevivência.

Alberto reconheceu o caos e ao cabo de um mês chamou Eurídice. Ela regressou magra, tisnada de sol e fogo, com o mesmo sorriso triste, mas não pediu perdão nem se arrependeu de nada. E nada mudou na vida do casal.

Deito os olhos ao calendário. O próximo dia cinco calha a um domingo, e por essa razão o meu jantar com Alberto fica para segunda-feira. Nem poderá ser de outra forma, ainda por cima agora que acaba de abrir a época de caça.


D.E.

Sem comentários: