terça-feira, janeiro 24, 2006

FLORES DA ÁGUA


Escusam de procurar que não encontrarão no mapa. Para chegar a Lagroal, àquelas quatro casas que brotam do vale brumoso sobre a linha do rio, é preciso conhecer a geografia local, sair da estrada que segue para o Santuário e descer sempre às curvas por uma via de terra batida que o Inverno torna intransitável. Nenhum problema por isso: ninguém vai no Inverno a Lagroal, ninguém lá mora durante esse tempo – as casas ficam vazias e apenas as cabras se aventuram pelas ravinas a morder o mato.

Quem se meter a caminho e esperar encontrar alguma referência toponímica, que se desiluda. Não há placa, por mais singela que seja, que indique o desvio ou a proximidade do lugar. A única que encontramos é já à chegada, umas tábuas toscas:

CAZA DO LELITO
FRANGO ASSADO E ENTREMIADA
VINHOS DO MILHOR
CAMAS E DUXES QUENTES

A força de Lagroal é no Verão. As casas regurgitam de gente, o Lelito faz negócio com os banhistas da fervilhante praia fluvial, com os que procuram cura para achaques do peito e doenças de pele na rudimentar piscina por onde irrompe a água salutífera: de um lado um muro alto, que serve de prancha de saltos e de mirante, onde se debruçam os que se arredam do banho, do outro uma barreira de tábuas por onde a água transborda para a língua do rio, borbulhante, tal como sai das entranhas da terra.

Vem de longe a fama de Lagroal. Há cem anos ia-se de carroça ou no dorso das alimárias. Chegava-se à improvisada piscina, já então com aspecto semelhante ao que hoje persiste em mostrar, e homens e bestas entravam nas águas para se refrescarem. Os homens iam de cuecas ou ceroulas, as mulheres aventuravam-se de corpete e saiote, ninguém tinha fato-de-banho. Pela hora do meio-dia sentavam-se à sombra dos salgueiros na orla do rio e comiam o arroz de coelho com pão de milho, bebiam da farta pinga e dormiam a sesta. Ao fim da tarde tocava-se concertina e armava-se o baile.

Hoje vêm de carro, matrículas francesas aos molhos, e o estacionamento selvagem sobe pela estrada até ao coruto do monte.

Em Lagroal há histórias curiosas que só são conhecidas dos que se habituaram a frequentar o local. O Lelito, por exemplo, chegou ali num certo Verão com uma mão à frente e outra atrás. Tomou o barraco que herdara de uma tia, meteu-lhe obras, e começou a assar frangos e a vender bebidas. Depois teve a sorte de deitar o olho a uma rapariga roliça que ali passava o mês de Agosto por causa de um problema de desregulação dos fluxos menstruais, que não havia médico que atinasse com o mal, e até já tinha ido a uma consulta da especialidade sem que conseguisse resolver o delicado problema. A moça – chamava-se Magnólia – começou a ajudar o Lelito no assador de frangos. Uma grelha de frangos assados, um mergulho nas águas. Levava assim todo o dia. À noite não se conseguia apurar o que é que fazia, mas dava para perceber que cada vez era mais unha com carne com o Lelito. Curou-se, uma cura surpreendente, e nunca mais se separou do assador.

Uma outra história é a do Padre Ramos, sacerdote ainda jovem, que estava colocado numa paróquia próxima e vinha dar missa campal todos os domingos. Ouvia em confissão, ministrava a comunhão. Eram muitas as almas que procuravam aos domingos o refrigério das águas ou que estanciavam no local durante o Verão, mal acomodadas, pois já se viu que não havia hotel ou mesmo pensão modesta, apenas umas casas que ofereciam umas camaratas, homens para um lado, mulheres para outro. Não se podia deixar essa gente sem conforto espiritual. Só que o Diabo é um tentador – isso já se sabe – e o Padre Ramos foi vítima de tentação. Quem fala do Diabo fala do Demónio, Demo, Satanás, Satã, Mafarrico, Lúcifer, Cornudo, Belzebu, Bode-Preto, Tinhoso, Chavelhudo, Maligno, Mico, Peneireiro, Rabão, Diacho, Coisa-Ruim, Pé-Cascudo, Porco-Sujo, Cão-Tinhoso, Sarnento, Tisnado, Zarapelho, Maldito, Beiçudo, Mofento, Lá-de-Baixo, Diasco, Excomungado, Arrenegado, Tendeiro, Tentador, Brazabum, Mal-Encarado, Tição, Bicho-Preto, Azucrim, Dianho, Anjo Mau, Espírito das Trevas – que tudo quer dizer o mesmo, é só escolher, compreende-se agora como é difícil fugir às ciladas que nos arma, tantos os nomes e disfarces que usa. Pois a tentação do Padre Ramos respondia pelo nome de Margarida, uma moça esperta que cursava Humanidades em Bobigny, na região de Paris, onde vivia com os pais, emigrantes. O Padre Ramos, que sempre tinha manifestado uma grande admiração pela cultura francesa, não resistiu. Casou em França, onde fixou residência, e no Verão costuma vir a Lagroal com a mulher e a prole.

Tudo isso se passou muito antes de D. Rosa, mulher vistosa, ter incendiado a orla do rio com as fulgurações do seu biquini amarelo, e de Alberto, o marido, ter granjeado famas incómodas por consentir à esposa tão magnânima exposição corporal. D. Rosa, a quem faltava qualquer coisa, pensava que a fama sem proveito era algo difícil de suportar. Se davam em ornar a cabeça do marido com excrescências ósseas, ao menos que colhesse ela o proveito, que de nenhum mau passo, até ao momento – não podia falar pelo dia de amanhã! – lhe pesava a consciência.

Mas o caso mais perturbante que se viveu em Lagroal – e que agitou toda a região – teve lugar aí há uns dez anos. Começou a correr entre os banhistas, que lhes dissera o Lelito e confirmara uma senhora que sofria de inchaços nas pernas e era funcionária da Câmara, haver um projecto para desviar as águas de Lagroal para o Santuário a fim de aí se instituir um moderno estabelecimento termal de curas miraculosas. Um arquitecto que pertencia à Obra Divina, uma conhecida organização religiosa, já tinha desenhado os edifícios, as fontes e as piscinas que acolheriam os enfermos em desespero. Chamemos as coisas pelo nome: o Santuário atravessava por essa altura uma arreliadora crise de milagres. Depois dos acontecimentos extraordinários do princípio do século, com danças astrais e chusmas de paralíticos a saltarem das cadeiras de rodas, a força milagreira foi abrandando. Só muito raramente se aludia a um ou outro caso extraordinário obrado por santo milagre, e mesmo assim havia logo médicos que torciam o nariz e davam explicações científicas para os pretensos fenómenos: uma úlcera feia que sarava, um membro decrépito que ganhava o vigor antigo, uma aperto do coração que se sumia. Apesar de tudo, como se pode ver, casos de somenos importância… As águas de Lagroal pareciam ser a tábua de salvação para renovados milagres. E houve quem garantisse que um engenheiro dos Serviços Municipalizados já tinha encomendado as bombas e as condutas para levar a água serra acima. De tudo isto se começou a falar em Lagroal por meados de Agosto, altura em que os frequentadores viviam em pleno as delícias da época balnear. O espanto e a tristeza não podiam ser maiores.

Foi então que em Pomar e Dourém – as cidades mais importantes da região – e até nos aglomerados populacionais mais pequenos como Freixarias ou Caxianda, saltou a indignação popular. Como dizia a propaganda da altura, os povos ergueram-se como um só homem para impedir o roubo das águas. Organizaram-se manifestações junto das câmaras municipais, os funcionários dos partidos políticos pediram esclarecimentos às estruturas concelhias, estas às direcções de distrito, e o assunto subiu aos conselhos nacionais, foi discutido no governo e no parlamento, as televisões apareceram, e começou a falar-se de boicote às eleições que se aproximavam.

Com a ajuda das televisões, os boicotes eleitorais são momentos altos de defesa e afirmação dos direitos cívicos. A receita é simples: toma-se uma corrente com o respectivo aloquete – aloquete quer dizer cadeado, usa-se esta variante lexical para dar um cunho mais elegante à prosa; fecha-se com essas alfaias a assembleia de voto; entretanto, tenta-se deitar a mão aos boletins e urnas para queimar todo o material; a Guarda aparece, ameaça restabelecer a ordem democrática, e é nesse momento que algumas cidadãs fazem frente à corporação policial – está comprovado que é mais difícil os guardas tomarem qualquer acção de força contra elementos do sexo feminino; chegam os repórteres das televisões e então, encenação primorosa, o presidente da junta de freguesia pede aos cidadãos que dispersem para que o direito de voto se exerça em liberdade; aumentam os protestos e o presidente da junta retira-se conformado. É nesta altura que o repórter anuncia que, nos termos da lei, o acto eleitoral será repetido na semana seguinte.

Mas não foi preciso chegar tão longe. O Santuário tinha adquirido, entretanto, novos argumentos para relançar os seus milagres e o povo confirmou o direito às águas. Se calhar puseram-se a fazer contas e concluiram pela inviabilidade do projecto. Talvez tivessem encontrado efeitos nocivos de impacto ambiental, talvez mexesse com as aves migratórias, com as espécies protegidas, e não pudesse beneficiar dos fundos comunitários. Algo aconteceu. Nos tempos que correm nada se faz sem demorados estudos prévios, até os grandes projectos abortam. Para os habituais frequentadores, sem meios para demandarem as praias ou as termas, foi uma sorte. Nem chegou a ser um milagre. Há lá milagre maior que os pequenos milagres da vida que todos os anos têm lugar em Lagroal: o corpo bonito de D. Rosa, na borda do rio, sob o esplendor dos salgueiros; o amor de Padre Ramos e de Margarida; as formas arredondadas de Magnólia com a pele em brasa ao lume do assador. E tantos outros de que nem temos conhecimento. Flores da água. E as curas do corpo e da alma, santuário verdadeiro sobre a língua do rio, três meses felizes de Verão. Para o ano há mais. Todos os anos.
D.E.

domingo, janeiro 15, 2006

AS CARTAS DE MARIANA


Tinha uma gaveta cheia de cartas de amor, maços de folhas manuscritas em caligrafia esmerada, nem sempre igual, o desenho das letras – largo ou contido – graduando a expressão dos afectos, o lume das paixões.

Sabe-se que não se ama sempre da mesma maneira, ainda que a qualquer paixão se associem por natureza a imoderação, o arrebatamento, o despojamento das faculdades racionais em tudo o que se relacione com a pessoa amada. Como andava frequentemente apaixonada, imagine-se o alvoroço da sua vida em risco permanente de se despenhar no insondável precipício dos sentimentos excessivos.

Mariana – assim se chamava. Uma gaveta cheia de cartas de amor que nunca chegaram a ser enviadas. Começou a escrevê-las aí pelos catorze anos, num tempo de manhãs ternas e tardes ensolaradas. Descobrira a centelha que lhe incendiava a alma e só era capaz de se aventurar pela seara da escrita.

Aos dezoito anos os pais comentaram: “A rapariga ainda não namora.” Aos vinte, concluíram: " Por este andar fica solteira.” E no entanto, a gaveta dilatava-se de inflamadas cartas que lhe brotavam naturalmente como uma respiração. E ia lendo Florbela, Camões, António Boto, poetas maiores do sentimento amoroso.

Aos vinte e três anos terminou o curso universitário, e teve de atender os conselhos familiares no sentido de começar a projectar o futuro, de pensar em constituir família, que não era na orla dos trinta que uma mulher devia dar esse passo. Agora que tinha concluído os estudos e já assegurara um estágio profissional, era despachar-se. Sem precipitações, claro, mas quanto mais cedo melhor.

Mariana lia por essa altura as cartas da outra Mariana, a do convento de Beja, dirigidas ao oficial francês por quem irremediavelmente se apaixonara. Eram tão diferentes as suas cartas. Era tão diferente o sentimento que a envolvia. Ou talvez até não houvesse diferença nenhuma – já não sabia ao certo! – o sentimento possivelmente era o mesmo, a diferença estava no modelo de expressão. O seu sentimento parecia-lhe mais profundo, mais verdadeiro, pela dificuldade que tinha em ser assumido.

Nos primeiros tempos de produção epistolar, os escritos de Mariana versavam essencialmente os aspectos afectivos, os desencontros e as separações, a ausência da pessoa amada e o desejo de a ver, de simplesmente a ver – eram cantigas de amor de um trovador moderno. O fogo das paixões agitava-lhe o viço da carne, desassossegava-a, mas havia sempre a ternura e a paz de uma carta que a resgatava do vazio da noite e a apaziguava madrugada fora. Mas isso foi no princípio. Com o passar dos anos, ultrapassado o patamar da adolescência, as cartas de Mariana foram-se tornando copiosamente sensuais, tons de carmim e ocre sobre o azul da inocência perdida.

E Mariana passou a sair muito, a chegar de madrugada, a fazer e a receber muitos telefonemas para acertar encontros e combinar recreios. Os pais observaram: “Deve ter arranjado namorado, já não era sem tempo.” E começaram a insistir com ela para que lhes fosse apresentado o eleito do coração.

Ela continuava a fazer a sua vida, independente, imune à curiosidade familiar, enquanto a produção de cartas se ressentia daquele frenesi vivencial. Passaram-se muitas semanas sem escrever uma única carta de amor.

Veio o tempo de férias e deixou-se arrebatar por nova paixão. Tinha ido sozinha para a praia, o Verão é sempre uma boa estação para amar. Uma paixão de sal, cabelos ruivos e sardas na pele, o amor em língua inglesa. Sarou as feridas da separação com muitas cartas escritas em inglês, a gaveta voltava à sua antiga opulência. Então os pais, que a viam passar mais tempo em casa, disseram: “Anda mais sossegada, era tão bom que esta rapariga assentasse.” Não sabiam nada da vida de Mariana, nunca souberam nada, uma filha que tinham em casa e que era quase como uma estranha. Sentiam que algo lhes escapava, que alguma coisa não estava bem, se ao menos ela arranjasse namorado para casar. Era mais do que tempo, já ia a caminho dos trinta.

E surpreendentemente, numa manhã de inexcedível felicidade, Mariana anunciou-lhes que iria viver com uma pessoa. Uma pessoa que ela amava, e por quem era amada. “Não há casamento?” – perguntaram. “Com casamento era mais bonito” – atreveram-se a sugerir. Que não, que não havia casamento, uma união livre, para durar enquanto durasse o amor. E combinou-se a apresentação: viria jantar no sábado seguinte.

Que azáfama com aquele jantar! Que cuidados postos na preparação dos pratos! O pai caprichou na escolha do vinho, que a um convidado, para mais sendo homem, oferece-se sempre um bom vinho, bebida nobre, néctar de deuses. Finalmente iam conhecer o namorado da filha, o homem com quem ela iria viver e mais tarde casar, isso estava fora de dúvidas, pois a legalização da situação acaba sempre por acontecer, torna-se tudo mais fácil, e depois há os filhos, é sempre bom os pais estarem casados.

Mariana chegou pelo fim da tarde, o rosto afogueado de emoção, os seios túrgidos de palpitações, trazendo pela mão o seu amor. Chamava-se Ana Maria, tinha no olhar um azul de aguarela pura e a boca era uma água límpida de se beber. E valia bem uma carta de amor.
D.E.

domingo, janeiro 01, 2006

RETRATO DE ORFEU COM EURÍDICE EM FUNDO

Alberto é meu amigo vai para vinte anos, desde os tempos em que, recém-licenciados, estagiámos na Direcção-Geral de Contribuições e Impostos. Não me consegui adaptar às funções de técnico tributário para que o estágio me preparava - talvez por prezar demasiado a minha independência e não me conformar com a maquinação de roubos protegidos por lei - mas o meu amigo Alberto, que tinha lido pela cartilha dos melhores mestres em finanças públicas, logrou subir os difíceis degraus da carreira e alcançar um importante lugar à mesa farta do orçamento.

Alberto é um homem positivo. Olha a vida com o seu olho azul de pragmáticas cintilações, aposta sempre - ou quase sempre - nos cavalos certos. Foi bem sucedido na carreira profissional, parecia sê-lo no amor. Mas já lá iremos…

Temos por hábito encontrarmo-nos para jantar a um dia certo do mês, nos dias cinco, excepção feita aos casos em que calhe a data em um domingo, avançando então para segunda-feira o amistoso repasto. A razão desta inoportunidade, que leva ao deslize de um dia na tábua do calendário, prende-se com uma das grandes paixões do meu amigo, que tem justamente em cada domingo o seu tempo de excelência – a caça. Alberto é caçador, um matador de rolas e perdizes, de coelhos e lebres, às vezes mete-se em montarias a dar cabo de veados e javalis.

Num certo domingo, andava eu pelo Alentejo a farejar monumentos megalíticos, os olhos ávidos de dólmenes e menhires, as pernas ainda mais doridas do que daquela vez em que me pus à procura do santuário do deus Endovélico, dou com o Alberto e o seu grupo de caçadores. Ia de escopeta ao ombro, um cinturão de coelhos mortos contra a folhagem do fato camuflado, os monteiros arrastando a matilha pelo trilho de lama da charneca. Rimo-nos do surpreendente encontro naquele recôndito lugar, e ele fez questão de me oferecer dois coelhos cuja carne saboreei no dia seguinte num suculento guisado com muitos chumbinhos à mistura.

Quando me lembro daquele grupo de caçadores, vem-me sempre à memória o filme de Carlos Saura, “ La Caza”, que vi numa sessão especial do Quarteto há um ror de tempo. Acho que foi a partir dessa altura que passei a detestar caçadores e a arrumá-los sistematicamente na mais sinistra gaveta das minhas faculdades judicativas. Excluindo, pela amizade e confiança que nos une, o meu amigo Alberto, a figura do caçador tornou-se para mim sinónimo de violência e falta de princípios éticos; posteriormente, cheguei mesmo a desenvolver uma teoria freudiana sobre a prática da caça, apresentando-a como sublimação do instinto sexual: a espingarda é o membro fálico, o cartucho a massa do sémen, os chumbos os espermatozóides - qual deles vai fecundar de morte o coração das aves e dos outros indefesos animais? O caçador, segundo a minha teoria, padece de um mórbido desinteresse pelo sexo feminino: sai de casa de madrugada, deixando sozinha a mulher, e na companhia exclusiva de homens mete-se pelas matas e charnecas do país profundo a estoirar pólvora e chumbo, elementos agressores do equilíbrio ambiental. Retorna ao lar lá para a meia-noite, bem comido e bebido, depois de dividir a caça e arrumar os cães. Cai à cama que nem uma pedra…

Assim, em cada jantar dos dias cinco, enquanto eu falava da precariedade do meu trabalho de jornalista, que é escrever sobre arte e temas de cultura, coisas aborrecidas de se lerem, o meu amigo Alberto narrava-me o seu último episódio de caça, como aquele em que se confrontou com um javali ferido que investira perigosamente sobre si. E tentava convencer-me de que a caça, como arte ou actividade lúdica, também é cultura, citando-me o “Livro da Montaria” de D. João I como prova da sua ancestral e irrefutável dignidade.

Mas Alberto tem outra paixão, os touros, e aqui também me esmaga, em sua defesa, com o peso de irrefragáveis personalidades como Hemingway ou Federico Garcia Lorca, que sendo homens de cultura e de pensamento também encontraram lugar para amar a festa brava. E recitava-me:

“A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde.”

A sua paixão pelos touros levou-o a frequentar uma tertúlia em Vila Franca onde passa as tardes e noites de sábado em ágapes e "tentaderos", além, claro, de não perder uma corrida nocturna no Campo Pequeno e de se deslocar com frequência à Andaluzia e à Estremadura de Espanha para assistir à "fiesta" e gritar olés. Lembram-se de uma manifestação que os defensores dos direitos dos animais fizeram em Barrancos contra os touros de morte? Pois o meu amigo Alberto estava na primeira linha dos contramanifestantes. Tal militância taurina deixou-me desgostoso, até faltei ao jantar desse mês pretextando uma arreliadora gripe de Verão.

Mas de quem eu queria mesmo falar-vos é de Eurídice, a mulher do meu amigo Alberto. Que dizer desta senhora que lhe deu duas filhas que já entraram na universidade? Sempre gostei dela, cada vez fui gostando mais, uma admiração contida que a amizade com o marido não me permitia extravasar. Eurídice tem quarenta anos, um corpinho próprio para a idade e uma cara que, sendo bonita, apresenta contudo reflexos de uma vaga tristeza. Tem uma voz doce, veste-se de forma juvenil, e o peito é ainda pujante de consistência e volumes apelativos. Eurídice começou há pouco tempo a frequentar o ginásio, o que revela que se preocupa com o corpo e com o aspecto físico. Comentei isso com Alberto num dos nossos jantares. Limitou-se a um encolher de ombros.

Como Alberto costuma cantar o fado, que é outro dos seus interesses, dei em chamá-lo de Orfeu, o mítico cantor amante de Eurídice, embora suspeitasse que por ela não desceria o meu Orfeu aos infernos. A vida do casal, sobretudo a partir da altura em que as filhas se fizeram mulheres, tornou-se sumamente monótona.

Cabe aqui referir um singular episódio, numa certa noite, que se passou entre mim e a mulher do meu dedicado amigo. Naquele mês, por força de o restaurante onde costumamos jantar se encontrar encerrado, fez-se o convívio do dia cinco em casa de Alberto. Toda a noite o olhar de Eurídice me abrasou a pele, vinho forte que me queimava a garganta, energia que me deixava tonto, desajeitado. Lembram-se daquele capítulo de “Dom Casmurro” de Machado de Assis – capítulo CXVIII, “ A mão de Sancha”? Pois se fizerem o favor de o ler poupar-me-ão umas boas linhas de narração, porque o que se passou foi mais ou menos como aí se explica, se é que se explica…Foi à saída, um beijo de despedida, e o fogo da mão de Eurídice, que tomou a minha, prendendo os meus dedos durante uma enormidade de tempo. “ Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao ouvido, trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.” – isto dizia Dom Casmurro, também chamado Bentinho, sobre a despedida que lhe proporcionou a mulher do seu amigo Escobar. Saí para a rua, depois de abraçar Alberto, com a sensação de me ter parado a digestão. Doía-me a cabeça, estava aturdido e nauseado. “ Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocámos. Agora achava-lhes isto, agora aquilo. Os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relógio foi assim marcando alternativamente a minha perdição e a minha salvação.” – Fala à vontade meu velho Dom Casmurro, que também eu senti o lume vivo na mão da mulher do meu melhor amigo; também eu sei aquilo que as mãos e os olhos são capazes de dizer no silêncio irremediável das palavras.

Voltemos ao meu Orfeu, o Alberto, com quem continuo a jantar e a discretear sobre coisas da vida e da amizade aos dias cinco de cada mês, salvo quando se interpõem o império da cinegética, a voragem taurina ou o apelo irreprimível do fado cantado. Na nossa última ceia, assim nomeada com toda a propriedade, pois começou, devido a inadiável compromisso do meu amigo na sua tertúlia de Vila Franca, já perto das onze horas da noite, tive uma notícia inesperada: Eurídice havia saído de casa. Tinha instruído as filhas de todos os quês e porquês da sua evasão: a monotonia da vida conjugal, a preterição a que estava sempre sujeita diante das paixões fortes do marido. As miúdas compreenderam tudo, até a apoiaram. O mais doloroso é que Eurídice tinha fugido com um qualquer Aristeu que andava lá pelo ginásio a fazer musculação. Ia para duas semanas que Alberto não lhe punha a vista em cima, apenas tinha falado com ela ao telefone, tendo-lhe sido dito que estava no Algarve e que como o tempo estava bom não pensava regressar tão cedo. Aparentemente parecia que Alberto tinha aceitado o revés com naturalidade, pois não alterou o seu ritmo de vida e nem se preocupou em descer ao Algarve infernal para a resgatar. Em verdade, os dias de hoje já não têm nada a ver com o tempo dos mitos…

Mas as semanas foram passando e a insegurança começou a instalar-se na tranquila existência do marido abandonado. A casa converteu-se numa grande desordem, porque a empregada doméstica, com a quebra da cadeia de comando propiciada pela ausência da patroa, ia descurando o cabal cumprimento dos seus deveres laborais: os aprovisionamentos e a cozinha não funcionavam, a limpeza vacilava, o serviço de roupas atrasava-se. Começaram a faltar camisas nos cabides do guarda-roupa, cuecas e peúgas nas gavetas da cómoda. Na despensa e no frigorífico as vitualhas estavam reduzidas a um mínimo de sobrevivência.

Alberto reconheceu o caos e ao cabo de um mês chamou Eurídice. Ela regressou magra, tisnada de sol e fogo, com o mesmo sorriso triste, mas não pediu perdão nem se arrependeu de nada. E nada mudou na vida do casal.

Deito os olhos ao calendário. O próximo dia cinco calha a um domingo, e por essa razão o meu jantar com Alberto fica para segunda-feira. Nem poderá ser de outra forma, ainda por cima agora que acaba de abrir a época de caça.


D.E.