segunda-feira, dezembro 26, 2005

A HISTÓRIA DE JOSÉ

Diz-se que foi o Anjo do Senhor que lhe apareceu em sonho, ordenando-lhe a fuga para o Egipto - facto extraordinário ou mera manifestação do inconsciente, nunca saberemos ao certo. Sabe-se sim, por um conhecido autor, que José trabalhava como carpinteiro nas obras do Templo de Jerusalém, serrando barrotes e aplainando tábuas, empunhando as ferramentas do mester com a destreza própria de operário qualificado.

Era a hora do meio-dia e tinha acabado de deglutir o frugal farnel que lhe permitiria repor os níveis mínimos da sua força de trabalho. Uma ligeira modorra tomou-lhe conta do corpo e da mente, terá dormido por breves instantes, mas aquilo que ouviu em seguida foi quando já estava absolutamente desperto, que nem poderia ser de outra forma, uma vez que na falta de sindicato ou comissão de trabalhadores que olhasse pelos direitos do operariado, a pausa para almoço estava reduzida ao tempo estritamente necessário à apressada ingestão dos alimentos, não sobrando para sestas, por muito breves que elas fossem. O que José ouviu foi algo que o sobressaltou profundamente.

Naquele tempo reinava na Judeia o cruel Herodes, um títere do Império Romano que era odiado pelo seu povo e por toda a gente de bem. Herodes era um doente terminal, desses que estão mais para a banda de lá do que para o lado da vida, e isso fazia-o ainda mais perverso e agarrado ao poder, como se bastasse a sua vontade para se perpetuar como rei e senhor. Convenceu-se de que em Belém, cidade que ficava no caminho para Hebron, tinha nascido um menino que as profecias diziam ser o novo rei dos Judeus. Havia indícios preocupantes do nascimento recente desse novo líder: uns magos que tinham vindo do Oriente, talvez das terras férteis da Mesopotâmia, a reboque de uma enigmática estrela; o desassossego de pastores e campónios que meteram pés a caminho para o adorar, e gentes anónimas que eram portadoras de estranhas notícias e indesejados presságios.

Voltemos ao que José ouviu. Nos muros do Templo de Jerusalém, que Herodes mandara reconstruir - talvez por isso lhe tenham dado o cognome de “o Grande” - conversavam três soldados sobre a operação que lhes tinha sido determinada para essa noite: cercar toda a cidade de Belém, entrar nas casas, nem era preciso mandado de busca, e tomar os meninos de idade inferior a três anos, matando-os como frangos, por degola. Não compreendiam os soldados os motivos de tão rara operação, se era determinação do reino da Judeia ou ordem imperial que tivesse chegado da longínqua Roma, mas uma ou outra proveniência pouco lhes interessava, porque o que releva das ordens castrenses é o seu cabal cumprimento e nunca a discussão sobre de qual ou quais instâncias elas procedem. Assim agia Herodes para defender a putrefacção do seu mísero trono: a matança dos inocentes.

Tinha José, com Maria sua esposa, um filho varão de tenra idade, de nome Jesus, que vivia com a progenitora em Belém. José exercia o seu mester de carpinteiro em Jerusalém, como já se disse, obrigado a viver separado da família pelas funções de pai alimentador, pois já naquele tempo era grande o flagelo do desemprego, sendo necessário ir procurar trabalho longe do local de residência. Imagine o leitor, especialmente se é pai, como ficou José ao ouvir a conversa dos incautos militares. Receando pela vida do filho, tomou de imediato o caminho de Belém, nem apresentou o pedido de demissão ao seu superior hierárquico, perdendo a féria da semana que bem falta lhe fazia, e foi juntar-se à família. E tomaram os três o caminho do Egipto, que a crer pelo que se conta devia ser terra de liberdades, direitos e garantias dos cidadãos, lugar de acolhimento de refugiados e perseguidos das tiranias.

(Situações dramáticas como esta já ocorreram em muitos lugares. Atente-se no exemplo de Portugal, país que também já teve ao longo dos séculos os seus Herodes, embora com nomes distintos, o que levou muitas famílias a fugir para outros Egiptos em busca de liberdade, embora esses Egiptos se chamassem França, Itália, Inglaterra. Mas isto é um pequeno aparte, que não nos deve fazer perder o fio condutor da nossa história. Por isso mesmo é que está entre parêntesis.)

Continuemos pois com a história do carpinteiro José, da sua dedicada esposa Maria e do menino Jesus, cujo nascimento abalou o mórbido Herodes e o levou a praticar os actos execrandos que nunca lograrão apagar-se da memória dos homens. O tal Anjo do Senhor, revelação em sonho ou simples manifestação freudiana do inconsciente, terá dito a José: “ Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto! Fica lá até que te avise. Porque Herodes vai procurar o Menino para O matar.” Ou terá sido José que ouviu a conversa dos soldados e vai dar no mesmo. E aí temos a família a salto pelos carreiros do Sinai, a mãe e o menino cavalgando a jumenta, José à arreata, os pés causticados pelas areias do deserto. Enquanto em Belém foi aquela sangueira de que nos falam os testemunhos escritos, Raquel e outras mães chorando os seus filhos, os pobres inocentes degolados pela tropa. Mas o menino Jesus tinha sido salvo.

Não se pergunte, que não saberemos responder, o que terá feito a família durante os dias amargos do exílio. Talvez José tivesse encontrado trabalho em alguma pequena oficina, em algum modesto estaleiro, que as grandes obras públicas como as pirâmides de Gizé, a Esfinge, os sistemas de drenagem de águas e de irrigação há muito que tinham sido concluídas naquele país. O trabalho não era tão abundante como no tempo de Moisés, em que por maior que fosse a caterva de hebreus sempre havia ocupação para mais um. Imagine-se o prejuízo causado à economia egípcia pelo Êxodo… E talvez Maria tivesse arranjado um lugar de empregada doméstica, limpando o pó dos móveis, cozinhando, cuidando de algum idoso, embora seja difícil admitir que conseguisse conciliar a profissão de serviçal com a cria do menino, sempre carente dos cuidados maternais, as mamadas, a muda das fraldas. Talvez tivesse encontrado um bom patrão que lhe permitia levar a criança para o local de trabalho… O que se conta, veja-se Mateus, versículo 2-19, é que tendo morrido Herodes apareceu de novo em sonho a José o Anjo do Senhor. E disse-lhe: “ Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e volta para a terra de Israel, pois já estão mortos aqueles que procuravam matar o Menino”. Mas pode também ter acontecido que entre a comunidade emigrada de judeus a notícia da morte de tão grande senhor se tenha espalhado de forma natural. Afinal o Egipto não estava assim tão distante da Palestina, e mesmo naquele tempo as notícias corriam céleres.

E assim temos José e a família retornando à terra pátria. Só que, por morte de Herodes foi o seu reino retalhado pelos três filhos. Herodes Filipe ficou com as terras a leste da Galileia, a Traconítide e a Decápole; Herodes Ântipas herdou a Galileia e a Pereia; enquanto o cruel Arquelau, tão cruel que o Imperador Augusto se viu na obrigação de o banir, recebeu os teritórios da Judeia, Samaria e Idumeia. Por precaução, não fosse Arquelau dar continuidade à perseguição movida pelo pai, não voltou a família à Judeia, tendo-se fixado na Galileia, em Nazaré, nas proximidades do lago Tiberíades.

(Veja-se ainda aqui o caso de Portugal. Muitas vezes ao longo da História houve neste país homens que seguiram o caminho do exílio. Garrett, por exemplo, fugiu dos absolutistas, sujeitando-se a viver em Inglaterra e em França, mas regressou com o exército liberal que desembarcou no Mindelo; Alegre, outro poeta, andou homiziado por Argel e outras esquinas do mundo, tendo retornado após a revolução democrática; o Manuel João, operário da CUF que ninguém conhece, safou-se para a Alemanha quando a PIDE lhe apertava o cerco, mas voltou em 27 de Abril. Uns regressaram de avião, como o Álvaro, outros de comboio ronceiro, como o Mário, que naquele tempo ainda nem se falava de TGV. O Manuel João, que ninguém conhece, veio de automóvel, num velho OPEL. Saiu de Colónia no dia 25 à noite, por isso só chegou a 27, quando a festa ia já adiantada. Serve este excurso para dizer que os exilados tendem sempre a voltar à terra que os viu nascer. Abandonam tudo no momento certo, quando ouvem a voz do Anjo do Senhor ou quando é a sua própria voz que os chama. Aconteceu com José e a sua família, aconteceu por todo o lado com todos os que tiveram de fugir dos pequenos e grandes Herodes do nosso mundo. Mas tudo isto, se calhar, são notas sem importância para a nossa história, digressões parentéticas não essenciais, coisas que vêm à cabeça do escrevente desejoso de preencher páginas. Vamos mas é fechar o parêntesis.)

Não há muito mais a dizer sobre a história de José. Em breve morreria, amargurado por não ter podido salvar os outros meninos, ele que sabia, não pelo Anjo do Senhor que lhe sonegou a informação, mas por ter escutado a conversa dos militares, que se ia dar em Belém uma matança de inocentes. O Anjo do senhor procedeu mal, até os anjos se enganam, a não ser que não tivesse sido informado pelos seus superiores hierárquicos da monstruosidade que se preparava. Se estivesse ao corrente, se calhar teria ido avisar também os outros pais, evitando dessa forma tamanha tragédia. Mas parece que a sobrevivência de Jesus era mais importante do que a dos outros meninos de Belém.

A partir de aqui o protagonista da história é o próprio Jesus, rei dos Judeus sem ceptro e coroa, que tanto pavor causou a Herodes e aos tiranos do seu tempo. Esse condutor de homens, desinquietador de consciências, militante ousado das causas da liberdade, filósofo da paz, deixou marcas na memória das gentes.

É por tudo isto, também pela razão de opressores e oprimidos não terem ainda desaparecido da face da Terra, que apetece gritar:

VIVA JESUS!

ABAIXO OS HERODES DO MUNDO!


D.E.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

HOMENAGEM AO GRANDE POETA MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE 15/09/1765 - 21/12/1805 NOS DUZENTOS ANOS DA SUA MORTE

...

Escuta o coração, Marília bela,
Escuta o coração, que te não mente.
Mil vezes te dirá: '' Se a rigorosa,
Carrancuda expressão de um pai severo,
Te não deixa chegar ao caro amante
Pelo perpétuo nó, que chamam sacro,
Que o bonzo enganador teceu na ideia
Para também no amor dar leis ao mundo;
Se obter não podes a união solene,
Que alucina os mortais, porque te esquivas
Da natural prisão, do terno laço
Que com lágrimas e ais te estou pedindo?
Reclama o teu poder, os teus direitos,
Da justiça despótica extorquidos;
Não chega aos corações o jus paterno,
Se a chama da ternura os afogueia;
De amor há precisão, há liberdade.
Eia, pois, do temor sacode o jugo,
Acanhada donzela; e do teu pejo,
Destra iludindo as vigilantes guardas,
Pelas sombras da noite, a amor propícias,
Demanda os braços do ansioso Elmano,
Ao risonho prazer franqueia os lares.
Consista o laço na união das almas;
Do ditoso himeneu as venerandas,
Caladas trevas testemunhas sejam;
Seja ministro o amor e a terra templo,
Pois que o templo do Eterno é toda a terra.
Entrega-te depois aos teus transportes,
Os opressos desejos desafoga,
Mata o pejo importuno; incita, incita
O que só de prazer merece o nome.''

( Excerto do poema ''Epístola a Marília´´
também conhecido pelo verso inicial ´´Pavorosa ilusão da Eternidade´´)


II.mo e rev.mo sr. bispo inquisidor geral. - Constando-me que n´esta côrte e reino giravam alguns papeis impios e sediciosos, mandei averiguar quem seriam os auctores d´elles, e encontrei que de uma parte dos mesmos era o seu auctor Manuel Maria de Barbosa du Bocage, o qual vivia em casa de um cadete do regimento da primeira armada, André da Ponte, que é natural da ilha Terceira: mandei proceder contra um e outro e á apprehensão nos seus papeis, e não se achando o sobredito Manuel Maria, se encontrou sómente o André da Ponte, que foi preso e apprehendidos os papeis, entre os quais se achou um infame, impio e sedicioso, que se intitula ''Verdades duras'', e principia:

''Pavorosa illusão da eternidade''

e acaba por

''Opprimir seus iguais com o ferreo jugo''

como consta do auto da àchada, que acompanha a conta que me deu o juiz do crime do bairro Andaluz, a quem eu havia encarregado esta diligencia. Do mesmo auto verá v. exª os mais papeis e livros, impios e sediciosos, que se apprehenderam ao dito André da Ponte, os quaes remetto inclusos com a devassa a que mandei proceder para averiguação da verdade, e as perguntas que se fizeram aos ditos Manuel Maria de Barbosa du Bocage, que passados alguns dias também foi preso a bordo de uma embarcação em que hoje ia fugido no comboio para a Bahia, e André da Ponte do Quintal da Camara. Remetto também a declaração que me fez da cadeia o dito Manuel Maria de Barbosa du Bocage, para que esse santo tribunal lhe dê o peso que merecer. V. exª me insinuará o mais que quer que eu faça sobre estes dois réus, os quaes conservo na prisão, esperando a restituição d´estes papeis, logoque forem examinados por esse santo tribunal pela parte que lhe toca. Deus guarde a v. exª. Lisboa, em 7 de novembro de 1797.= DIOGO IGNACIO DE PINA MANIQUE.

(Extraído de Simão José da Luz Soariano,
''História da Guerra Civil e do estabelecimento do Regime Parlamentar em Portugal'',
Lisboa, Imprensa Nacional, 1879)

terça-feira, dezembro 20, 2005

A PALAVRA MÁGICA




Ia para três meses que só se lhe deparavam contrariedades, factos insólitos, perturbantes ocorrências que o deixavam angustiado e cada vez mais carente da sua dose diária de ansiolíticos.

Começara por adormecer ao volante, na auto-estrada, entregando a delicada chapa do carro à massa bruta dos railes, o corpo dorido e os nervos em alta, uma passagem obrigatória pela urgência hospitalar. Ainda mal refeito deste acidente, foi notificado para comparecer na repartição de finanças a fim de ser inquirido sobre a sua declaração anual de rendimentos, um complexo de rendas prediais faltosas, direitos de autor sonegados, excêntricas deduções à colecta e reveis pagamentos por conta. Depois, como não conseguia acrescentar uma linha à obra que tinha entre mãos, um romance filosófico sobre a angústia do Homem perante a morte, recebeu uma carta dos editores denunciando o contrato-promessa de edição com as correspondentes penalizações. Foi então que apanhou um avião para Londres para passar um fim-de-semana com a namorada, que fazia um doutoramento em Finanças na Universidade de York, mas encontrou-a apaixonada por um professor americano de Política Internacional que era um fervoroso prosélito de George Bush e escrevia nos jornais sobre o perigo das armas de destruição maciça nos países do eixo do mal. Regressado a casa da forma que se pode imaginar, tinha à sua espera a notícia da fixação, pelo tribunal, da pensão de alimentos que era devida ao agregado familiar do primeiro casamento. Mas o pior ainda estava para acontecer: assediado sexualmente pela empregada, uma ucraniana de sangue quente que fazia três horas diárias de serviço doméstico, não resistiu às investidas eslavas e quando menos esperava estava a contas com a máfia russa, da qual era membro destacado o marido da voluptuosa serviçal.

Foi então que se deu a leituras para se distrair ou granjear inspiração, mas não logrou passar da página cinquenta e quatro de As Intermitências da Morte, precisamente daquele ponto em que entra em cena a máphia, assim mesmo com ph, pelas desagradáveis sensações que tal palavra lhe suscitava. Ainda procurou na livraria os aerogramas do Lobo Antunes, obra que lhe parecia de leitura amena, mas como se havia esgotado o estoque e estava atrasado o envio de nova remessa, entregou-se aos escritos de Rui Zink num livro de bela capa que repousava, havia alguns meses, num lugar aprazível da estante.

Começou por ler o poema de Carlos Drummond de Andrade que serve de epígrafe, e meteu-se em seguida pelo bosque das palavras, árvore após árvore, à descoberta da palavra mágica. Acredite-se ou não, há em todos os livros uma palavra mágica, uma espécie de brinde, jóia pura que premeia o leitor arguto e descobridor. É assim como o Raio Verde do pôr-do-sol de Júlio Verne, a última luz que o astro exala antes de se meter no mar, e que recompensa o observador mais persistente, o que de forma mais apaixonada o procurou. O livro chama-se justamente A Palavra Mágica, uma festa de magias e de lugares de assombro. Com tanta infelicidade que nos últimos tempos lhe fazia o molde dos dias, a dolorida expressão das horas e dos minutos, nem queria acreditar no que tinha nas mãos, na sorte que finalmente se tinha acercado de si nas palavras felizes daqueles contos. A palavra mágica havia de estar por ali, era só encontrá-la e mudar o curso da vida.

Como andava às voltas com as filosofias da vida e da morte, deteve-se com especial atenção no conto intitulado Pavilhão do Futuro, lugar que, numa inominada expo, todos acabamos por visitar, mesmo que tenhamos de esperar tempos longos em longas filas, mesmo sabendo que uma vez aí entrados nunca de lá sairemos para conhecer outros pavilhões. Bem podemos ter bilhete válido para o tempo completo do certame, livre-trânsito para irmos a todo o lado, que o Pavilhão do Futuro é sempre a nossa derradeira visita. E quanto mais se adentrava no texto e fazia por o interpretar, mais se convencia de que a palavra mágica teria de morar nas linhas daquele conto. Não acreditava que ela fosse a que o autor especiosamente indicava no final do livro, pois é sabido que neste particular os escritores procuram sempre despistar os seus leitores, dando-lhes dúbios sinais, tornando assim mais difícil, mas também mais gratificante, a descoberta da verdadeira palavra mágica.

Viveu feliz a aventurosa demanda. Se encontrou ou não o que procurava é questão que só poderá ser respondida pelos desenvolvimentos subsequentes da sua vida: - Parece que se reconciliou com os editores, a quem entregou a versão final da obra contratada. E a doutoranda de York, refeita do arrebatamento de que padeceu, retornou doutorada ao seu primitivo amor. É verdade que a antiga mulher, confortada com o império das decisões judiciais, nunca deixou de exigir, nas datas combinadas, as prestações pecuniárias atribuídas por lei, e que, para obviar a um processo judicial com uma muito provável acção de penhora, se viu obrigado a negociar com o chefe da repartição de finanças um plano de pagamento da sua dívida fiscal. Mas a máfia deixou de o apoquentar, devido à oportuna detenção do cioso marido da empregada doméstica. E esta, grata pela prodigalidade dos afectos patronais, que nem a obsessão criminal lograra diminuir, prosseguiu com zelo no desempenho das suas funções, nunca se queixando ou sequer reclamando aumento de salário, apesar do acréscimo de trabalho que passara a ter com a chegada da patroa.
E tudo isto, muito provavelmente, por obra e graça da palavra mágica.


D.E.

terça-feira, dezembro 06, 2005

ALFARROBEIRA

Não se percebia bem o que se passava com elas. Se havia defeito, desvio, vício ou perturbação que de forma isolada ou por efeito conjugado sustentassem tão singular comportamento: levavam as tardes metidas na biblioteca, chupando o pó dos livros, gastando a luz dos olhos, enquanto os colegas frequentavam a praia ou se divertiam na amenidade das salas de cinema climatizadas. Apaixonadas pelas leituras da História, tinham começado por dissecar os cartapácios do Serrão, os calhamaços do Mattoso, até se baterem com a escrita arrevesada dos cronistas, desejosas das fontes e das notícias em primeira mão. Absorvia-as a Chronica de El-Rey D. Affonso V, de Rui de Pina, que liam numa edição antiga, fascinadas pela figura do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra.

Caras de anjo em corpos apetitosos de mulher. E no entanto, não se lhes conheciam namorados, amigos, homens com quem saíssem ou convivessem. Viviam fechadas sobre si, como numa ilha, entregues aos estudos. Os colegas machos que assim as viam embrenhadas em tão aturado labor, acostumados a pisar o terreno mole da brincadeira, tiravam-lhes as medidas e despiam-nas com os olhos, que mais não conseguiam, descorçoados com tamanho desperdício. E como estavam numa faculdade de letras e num curso de estudos clássicos, houve até quem viesse dizer, mais por despeito que por convicção, que havia segredos de Safo na ilha de Lesbos daquelas meninas. Mas não entremos por aí.

Para além das leituras, gostavam de trabalhar no terreno, de visitar os locais onde se tinham dado os grandes acontecimentos históricos. Procuravam os marcos do tempo, respiravam os ares impregnados de memória. É verdade que sempre se sente algo de indizível, uma recepção de singulares energias, quando se está fisicamente presente nesses lugares marcados pela memória dos homens. É verdade que a História tem essa dimensão de sonho e de paixão. Mesmo assim, não era compreensível que duas belas raparigas, em pleno viço, não puxassem um pouco para o lado animal do corpo e tanto se deixassem prender pela vertente etérea do espírito. Mas por mais interrogações que o seu comportamento suscitasse, de uma coisa não havia dúvidas: é que tinham ficado muito mais estranhas, mais fechadas, passando ainda mais tempo na biblioteca, desde aquele dia em que rumaram a Alverca em demanda do local da Batalha de Alfarrobeira.

Diziam uns, que algo de grave se teria passado nessa deslocação: assalto, ameaça, roubo, tentativa de violação. Para quem vivia em Telheiras, Alverca afigurava-se um perigoso bairro suburbano. Diziam outros, que não. Que tudo era devido à proximidade dos exames: perfeccionistas como eram, andavam obcecadas com o estudo das matérias. Foi a professora de Civilizações Clássicas, com quem alguns alunos comentaram o desvario comportamental das colegas, que esclareceu: para além da História, tinham começado a dedicar-se à leitura de tratados de numerologia e escritos esotéricos. Ela mesma, que estava a preparar uma tese de doutoramento sobre a filosofia de Pitágoras, lhes tinha dado, a seu pedido, orientação bibliográfica nessas áreas. No entanto, não soube explicar por que razão se tinham passado a interessar por aqueles estranhos saberes.

O caso parecia sério. Tinham deixado os anódinos cronistas, cujos escritos, que se saiba, nunca fizeram mal a ninguém, para se atolarem em perniciosos esoterismos, em enganosas leituras, das quais se sabe sempre como se entra, mas nunca como se sai. E houve logo quem lembrasse, a propósito, os conhecidos malefícios causados em mentes mais frágeis por livros tão nocivos como o Manual do Exorcista, O Livro de S. Cipriano, O Código Da Vinci ou o Elucidário, este, segundo consta, ditado pelo espírito de Paulo de Tarso. Era imperioso avisar as famílias, alertar para o arriscado declive em que ameaçavam resvalar. Aquelas raparigas precisavam de respirar outros ares! Uma colega de turma que as acompanhava desde os tempos da escola secundária resolveu dar uma ajuda. Passou a frequentar a biblioteca, avaliou bem o que liam, ponderou, e na altura própria convidou-as para uma noite de festa numa discoteca da 24 de Julho. Ladies night, assim se chamava o evento. Surpreendentemente aceitaram o convite.

O que se soube depois foi algo de ainda mais surpreendente.

Na 24 de Julho, o bar aberto às ladies, o espírito das bebidas a tomar conta das mentes, as palavras a soltarem-se em catarse, veio à conversa o assunto da deslocação a Alverca.

Procuravam a ribeira de Alfarrobeira, em cujas margens se deu, como é sabido, o trágico recontro entre a hoste do Infante D. Pedro e a tropa do seu sobrinho e genro, o jovem rei D. Afonso V. Não foi fácil dar com a ribeira, que agora corre em leitos artificiais, encanada na zona das portagens sob o manto asfáltico da auto-estrada. Por lá andaram a deitar os olhos para as hortas e para os armazéns dos operadores logísticos, foram até à fábrica da cerveja. Os camionistas que circulavam na estrada e viam aqueles nacos de mulher buzinavam e mandavam-lhes bocas do alto das cabinas. Não dando com a ribeira, voltaram atrás. Desceram em direcção à rotunda, e junto à rede que veda um terreiro onde se acumula uma panóplia de decrépitos materiais de construção, ouviram, num estrépito de metal e água, o coaxar das rãs. Olharam através da malha da rede a superfície quase estagnada da água, uma capa de lodo verde numa vala de paredes cimentadas. A visão era desoladora, mas um pouco adiante o curso líquido ganha o leito natural de areia e seixos, mete-se pela cortina dos canaviais e, bordejando as hortas, passa a estrada nacional na direcção do Tejo. Era aquilo a ribeira de Alfarrobeira.

Isto acontecia a 20 de Maio de 2004. Deram conta, então, de que tendo a batalha ocorrido em 20 de Maio de 1449, tinham passado justamente 555 anos sobre a fatídica data. E estavam a dia 20, múltiplo de 5; e no mês de Maio, mês 5. Por sinal até era Quinta-feira, e os relógios indicavam as 5 horas da tarde. Entenderam aquela singular conjunção de cincos como um sinal de indisfarçável sentido numerológico. Tanto mais que do túnel que passa sob a auto-estrada vinha saindo em revoada um bando de corvos grandes e lustrosos. Poisaram as aves na placa central da rotunda e começaram a andar sobre a relva bamboleando a massa sólida dos corpos. Contaram 55 corvos, coisa extraordinária, que até dá para duvidar, pois como é que é possível fazer uma contagem segura de animais tão irrequietos, que ora avançam, ora volvem atrás, quando se vai contar um já outro que foi contado está em lugar diferente, para já não falar dos que resolvem esvoaçar de um sítio para outro, complicando a tarefa dos contadores? Estes 55 corvos pareciam ser já fruto de alguma perturbação. O mais extraordinário é que elas garantiam ter ouvido o tropel das cavalarias e o vozear guerreiro das peonagens, o fragor das armas entrechocando-se, os silvos das frechas despedidas das bestas. Foi uma dessas frechas que matou o Infante D. Pedro, o coração trespassado, morte imediata, sem tempo para a confissão, valeu-lhe a absolvição dada pelo Bispo de Coimbra no preciso momento em que a alma lhe saía da carne. Enquanto o Conde de Abranches, amigo e companheiro do Infante desde os tempos de Ceuta, que ao deixar Coimbra jurara não lhe sobreviver naquela arriscada empresa, continuava a pelejar, ferindo e matando com grande sanha, até que, cercado, se entregou aos ferros do inimigo, proferindo aquelas palavras – Ó corpo, já sinto que não podes mais, e tu minha alma já tardas; ora fartar vilanagem – com que despediu a alma de si para ir ter com a do Infante. E logo lhe cortaram a cabeça, para a levarem como troféu a El-Rei em busca de honras e acrescentamento. O cadáver do Infante D. Pedro ficou toda a tarde exposto ao Sol, no campo, sob as asas dos corvos. À noite lançaram-no numa fétida choupana, onde ficou insepulto durante três dias, até que o levaram numa escada, a servir de esquife, à Igreja de Alverca, e aí lhe deram a sepultura possível, que a que lhe era devida, como príncipe da Ínclita Geração e regente do Reino, teve-a mais tarde, no Mosteiro da Batalha, junto de seus pais e irmãos.

A companheira que as desafiara para a noite, e que assim tomava conhecimento dos enigmáticos sucessos de Alverca, engoliu rapidamente o seu vodca com laranja e foi habilitar-se a nova bebida, que estava mesmo necessitada… Tinha-se arrepiado um pedaço com toda aquela história de corvos e de figuras insignes a entregarem a alma ao Criador em meio de tão crua peleja, mais a profanação dos cadáveres e a recusa em sepultar os vencidos, acto piedoso que é devido a qualquer cristão, quanto mais a filhos de reis e a nobres de luzida estirpe. E ainda com a revelação de tudo aquilo ter sido ouvido, quando não visto ou sentido pelas colegas como se estivessem numa sala de cinema a assistir a uma superprodução da sétima arte.

Com a madrugada plena, a música atroava os ares da discoteca. Calaram-se as três por uns minutos, enquanto procediam à ingestão de mais uma rodada. A companheira ainda lhes pediu explicações sobre o episódio de Alfarrobeira, que era matéria da História que lhe escapava um pouco. Só teve tempo de compreender, o que já não foi mau, que se tratou do velho conflito entre o poder régio e o poder senhorial. Este, representado pela clique de nobres que rodeava o jovem rei D. Afonso V; aquele, a bandeira da luta do Infante D. Pedro enquanto regente do Reino. Saíram as duas para a pista de dança, enquanto a companheira permanecia sentada, um pouco aturdida, pensando nas surpreendentes revelações feitas pelas colegas. Conta-se que teriam dançado até ao fim da noite com dois desconhecidos que destoavam, em aspecto e indumentária, do modelo típico dos frequentadores daquele espaço. Apareceram e desapareceram naquela mesma noite. E há quem assevere tê-las visto dentro de um táxi, em Santos, em companhia dos tais desconhecidos. Mas a verdade é que às cinco da manhã, depois de uma noite de farra, há coisas que os olhos vêem que nem sempre condizem com a realidade.

Na semana seguinte ninguém deu por elas na biblioteca. Frequentavam as aulas durante a manhã, e à tarde conviviam amenamente com os outros estudantes na cantina da faculdade. Passavam os olhos por alguns textos de leitura obrigatória, conversavam, saíam ao fim do dia. Antes de se meterem em casa davam uma volta pelo centro comercial para recreio da vista. Estavam todos admirados com o novo procedimento das colegas e ninguém conseguia determinar a razão de tão substanciosa modificação. Provavelmente, nem elas teriam uma explicação consistente para o que lhes estava a acontecer. Sabiam apenas que se sentiam diferentes, mais amigas da vida e da alegria, resultado talvez de terem ousado falar dos seus fantasmas e dos enigmas que as perseguiam. Ou de algo mais…

O curioso é que a biblioteca ganhou, entretanto, uma nova e assídua leitora: a colega que as levara para a discoteca da 24 de Julho, que passou a marcar presença, todas as tardes, naquele ambiente austero, a contas com a leitura da Crónica de El-Rei D. Afonso V, de Rui de Pina.

D.E.